[texto publicado originalmente no Digestivo Cultural]

O espetáculo está acontecendo agora: olhe à sua volta. Ao passo em que você atravessa a rua da avenida movimentada, entra na fila da lanchonete para o seu lanche usual, por acaso levanta os olhos do livro ou celular para espiar o mundo — está acontecendo. Corpo_Cidade_Rotinas, peça dirigida por André Capuano, não precisa ser montada: sua matéria é a urbe, e nós estamos inscritos na urbe. Menos uma composição cênica e mais a disposição de cotidianos particulares, vidas comuns que devemos perseguir pelas vias e praças por algumas horas, a montagem parece extrair sua força, no entanto, do fato de que as experiências possíveis da cidade se mediocrizam em ruído branco — a obra, como que se opondo a isso, procura nos devolver a vivência. Ensinar ritmos, curiosidades e pontos de vista. Responder: como voltar a ver?

Capuano começou as pesquisas que desembocariam na peça de que tratamos em 2005. De estudos sobre teatro e performance, âmbitos público e privado, espaços de grande circulação de pessoas, cunhou o nome Corpo_Cidade em 2013. Em 2014, com a bailarina Paula Petreca, realizou Corpo_Cidade_Bom_Retiro, montada no bairro paulistano de mesmo nome. O projeto Rotinas foi iniciado em 2015. Fazem parte do elenco Erika Kobayashi, Evandro Zampiere, Gilka Verana, Jennifer Glass, Rodrigo Rodrigues. O grupo mantém um perfil no Instagram.

O espetáculo acontece até o fim de 2016 nas imediações da Praça da República, em São Paulo; percorre as ruas Barão de Itapetininga, Dom José de Barros, 24 de maio e a avenida Ipiranga. Os interessados se inscrevem pelo site e recebem por e-mail instruções sobre como assistir à peça. Devemos nos posicionar em certo ponto de um dos logradouros citados no horário marcado. “Sentar, ficar e observar” por 23 minutos. Então, um “atuante” (não um “ator”) nos encontrará; devemos segui-lo por uma hora e dois minutos. Pela hora seguinte, poderemos seguir qualquer um dos outros atuantes, ou não seguir nenhum. Nos sessenta minutos finais, temos de voltar a perseguir apenas um deles. Além disso, recomenda-se que nós estejamos sós com a narrativa, que a experiência seja “individual”; e proíbe-se filmar ou fotografar.

É a rigidez formal de um ritual; pede uma entrega, uma seriedade, e inspira alguma estranheza. Pois bem. Estou às 14h à frente de uma porta de ferro, típica de loja, marcada com a tipografia do pixo. Há dois bancos de plástico branco, sem encosto, como na foto que me enviaram como orientação. Sobre um deles, há um jogo de tabuleiro (isso é parte da peça?). Sento-me. Vejo as várias barracas dos camelôs formando um corredor atabalhoado de objetos margeado de rua. Duas crianças, uma negra e uma branca, aparentemente filhos dos comerciantes informais, se aproximam: são os donos do jogo de tabuleiro (isso é parte da peça?). Uma construção fechada de tapume está a minha direita, também as manchas de mijo nas pedras portuguesas, os toletes de bosta de cão ou de gente. O cheiro chega a mim às vezes. Lembro de uma música:

Aqui estou eu
Há meia hora parado
No cruzamento da Brigadeiro Luiz Antônio com a Avenida Paulista

Que dialoga tão de perto com a experiência que parecem me propor. O menino branco pega um cabo de vassoura quebrado, cutuca a merda e ameaça passar no outro, rindo. Uma mulher loira e gorda ralha com eles alguma coisa; possivelmente é a mãe. Os meninos levam o banco com o jogo de tabuleiro para o outro lado da barraca (isso é parte da peça?). Eu devaneio assistindo à variedade de pessoas que passa; quanto tempo são vinte e três minutos, não? De repente, vem um rapaz de roupa social preta e se agacha ao meu lado. Ou é doido ou é o atuante. Mantenho-me indiferente por via das dúvidas. Então, ele começa a descrever-se cada passante. “Todo dia eu ando pela rua olhando no celular”; “Todo dia eu limpo o nariz quando passo na frente da loja fechada”. Vê — e narra a multidão em primeira pessoa (seria essa a chave da peça?).

Parte do que declama se refere propriamente ao personagem: todos os dias, bebe um suco em tal lanchonete, liga, do celular, à namorada que está no Japão, e, do orelhão, para uma prostituta. Quando se ergue, se não estávamos, estamos na narrativa.

Desacelerar, Repetir, Compilar
O rapaz de roupa social anda vagaroso pela rua. Sigo, tanto a frente, tanto atrás, esperando; um corpo educado pela pressa é inquieto. Caminha pé ante pé; telefona: “Tentativa de te acordar nº 1”; confere as propagandas: Fábia Chupetão (1,80, carioca, morenaça, oral até a última gota, anal na faixa), Índia Coroa 47ª (peluda, ativa e passiva, chupo sem, faço anal); bebe um suco de caixinha. Repete; repete outra vez. Primeiro, rompemos com a velocidade; segundo, rompemos com a novidade, o evento — nada está acontecendo, ou nada “novo” está acontecendo. Sobra a cidade palmilhada e repalmilhada. As voltas sucessivas no mesmo lugar me entregam lugares diferentes: o quarteirão de imigrantes africanos, o negro da sua pele tão intenso, os vestidos de estampas geométricas; o camelô de rosto todo tatuado; a loja que anunciava calças com preços ao meu gosto; o vendedor de quadros de personalidades pop.

A lembrança retorna coesa e íntegra, mas foi fragmentária: o que me foi invisível na vez inicial, pode ser visto nas seguintes. Ver é desacelerar, ver é repetir, ver é compilar?

Ao fim da primeira hora, reúnem-se os atuantes em um espaço aberto, encontro de vias. Como que param no tempo, pés, pernas e braços flexionados, gestos paralisados. Por si só, trata-se de uma performance; os habitantes no centro param para ver (uma mulher com uns quarenta anos empaca na frente de um deles, debochada, imitando). Na sequência, seguirei uma menina baixa e japonesa, acompanharei sua pausa para fumar, seu almoço no quilo (a atuante pede para ela e para mim duas linguiças, comemos com limão, estava ótima); sentarei no meio-fio com o moço magrelo que vende origamis, expondo-os em um caixinha colorida escrito “Quanto vale?”; irei à livraria e verei a menina que faz pesquisas de opinião pedir Toda Poesia, do Paulo Leminski (é o aniversário dela, descobre-se quando ela faz o cadastro; e há lá um senhor que aniversaria no mesmo dia ou próximo; eles se congraçam). O corpo, a essa altura, educou-se contemplativo.

É como se pudéssemos pegar o bonde de uma das vidas que passam por nós. É difícil precisar a categoria de visibilidade em que estamos. Observadores? Muito focado e objetivo — sendo que a urbe vaza dentro o tempo todo e não sabemos bem o que estamos fazendo. Espiões, voyeurs? Há pragmatismo e reificação de menos no nosso olhar. Espectador, público? Mas só de maneira débil se reconstroem os distanciamentos de um palco, pois estamos na mesma ação, e a quem está de fora devo ser tão curioso quanto o ator (por essa possibilidade, sinto alguma vergonha). Flâneurs? Não há frivolidade forçada. Turistas? Não há peculiaridades pré-montadas. Um tipo de vazio, portanto, é construído por Corpo_Cidade_Rotinas: apenas veja. Interessado, às vezes, ou nunca; desatento, se quiser. Uma liberdade tamanha e irregular como a cidade.

O espetáculo é “chato”, pois sem justificativa, sem uma desculpa para o “o que eu estou fazendo aqui”; e é profundamente curioso, porque toda uma fertilidade nos é apresentada. Na dialética entre esses dois sentimentos está talvez o maior valor da peça.

O Avesso do Avesso do Avesso do Avesso
O personagem central de Sinédoque Nova York, do diretor e roteirista Charlie Kaufman, em dado momento professa: “Há quase 13 milhões de pessoas no mundo. Tente imaginar esse tanto de pessoas! Nenhuma dessas pessoas é coadjuvante. Eles são os heróis das suas próprias histórias. Eles devem receber o que lhes é devido”. Uma compreensão de que toda vida é preciosa: existe um pouco disso em Corpo_Cidade_Rotinas também. A figura de linguagem que dá nome à obra de Kaufman também lhe cai bem: “sinédoque”, todo pela parte ou parte pelo todo — na película e na peça, é por pedaços da urbe que se mostra a urbe (aqui, pelas vidas que seguimos nas ruas; lá, pela reprodução monumental da cidade).

Os percursos valiosos de cada um se cruzam — a cada vez em que os atuantes passam um pelo outro, eles se observam, imóveis, por um instante. Novamente, a música:

Pessoas com mundos totalmente diferentes
mas que, naquele momento, naquele cruzamento, se cruzaram.
Interessante, né?

Os artistas da peça usam o termo “fricção” para designar um dos elementos que exploram. É o que se passa aqui, de fato, com as resistências e permeabilidades que a palavra implica. Eles se imobilizam também frente aos locais dos quais o espetáculo parte (a minha porta de ferro e os demais). Esses lugares deixaram de ser passagem, pano de fundo, pontos insignificantes, estão potentes de sentido — sabemos que poderiam nos levar a descobertas diversíssimas. Conforme a montagem se aproxima do final, esses “marcos” vão se tornando mais frequentes, o ritmo fica sincopado.

Podemos ver todos os atuantes na extensão da rua, indo de um lado ao outro, parando em frente às lojas, sentando-se nos cafés; um momento, uma atividade. Acelerados, singulares e despedaçados — como continuar vendo? Eles se alinham em uma reta, depois partem à cena final. Persigo-os, em particular a atriz mais bonita, que eu tinha escolhido seguir por último. Os atores estão espalhados, de um lado e outro da avenida Ipiranga, distantes quarteirões um do outro, até que o devir se detém definitivamente à beira da avenida São João. A imagem é forte — as esquinas, o canteiro central, pontuado, enriquecido de atores. E quem vem de um sonho feliz de cidade, reaprende depressa a chamar o que se deixa ver de realidade.

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