por Adelto Gonçalves
I
O jornalista Duanne Ribeiro, depois de incursionar pelos gêneros romance e novela e publicar outras produções em antologias e periódicos, chega ao público-leitor com uma obra de poesia que surpreende por seu experimentalismo. Trata-se de *ker– (Goiânia, Editora Mondru, 2023), que surpreende até mesmo pelo título pouco usual, em que reúne peças que passam longe do que se entende por uma poesia lírica e bem comportada, mas que, acima de tudo, procuram reconstituir o mundo perdido de uma infância passada nos anos 90, a última década em que as crianças ainda foram bem crianças, em meio a jogos, minigames e desenhos animados malucos e divertidos, antes da chegada dos tablets, celulares, videogames de última geração e redes sociais, como facebook, instagram e outras.
Já em seu primeiro trabalho de ficção mais alentado, o romance As Esferas do Dragão (São Paulo, Editora Patuá, 2019), Duanne Ribeiro procurou, a partir de experiências pessoais, especialmente ligadas à infância e adolescência, construir um texto que foge aos padrões tradicionais, pois permeado de referências à cultura pop e aos desenhos animados, especialmente o Dragon Ball, criado pelo desenhista japonês Akira Toriyama (1955), que, exibido no Brasil pelas redes SBT, Band e Globo, tornou-se um marco na programação infantojuvenil na década de 1990.
Agora, no gênero poesia, Duanne Ribeiro também não deixa de lado o experimentalismo de linguagem. Pelo contrário. E para se saber do que se trata é preciso pesquisar muito ou se deixar levar pelo autor que, mais adiante, explica a razão do título do livro que, a princípio, pouco quer dizer para o leitor comum.
O termo ker, como observa o poeta, tem muitos significados, mas aqui, com asterisco e traço, carrega principalmente a raiz de creare, o latim que nos legou o verbo criar e, consequentemente, a palavra criação, que seria o impulso deste livro e de outros que o autor já escreveu e publicou. Enfim, trata-se de uma introspecção sobre o que significa criar, passando pela pluralidade de formas inventadas para dar conta de diferentes relações com o ato de escrever.
Mas esse, como acrescenta, é apenas um dos sentidos de ker, que pode significar também chifre, ruídos altos, calor e fogo, crescer e brotar, ferir, além de um tipo de cereja, conforme o American Heritage Dictionary of Indo-European Roots.
II
Seja como for, o que se pode, a princípio, apontar na poesia de Duanne Ribeiro é a sua genuinidade, além da simplicidade. Ou seja, ele não pretende prestar homenagem a nenhum grande poeta brasileiro ou estrangeiro nem a qualquer movimento poético, além de deixar claro que não pretende exibir erudição. Mas, por trás da simplicidade, o que se esconde é um vasto conhecimento dos meandros da arte poética, até porque se trata de um estudioso que foi muito além da graduação em Jornalismo, ao entrar também nos estudos de Filosofia, o que se pode descobrir a partir da citação que faz de alguns nomes, como o do filósofo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662) que está no poema “eis minha aposta”:
na aula sobre Pascal, / o ruído dos grilos / me interessa mais / que o amor de deus. / mormaço e teologia; / entretanto, fronteiriças, / folhagens e janelas… / pousam / esperanças / em mim / verdes insetozinhos / vindos da noite do verde / que não mato por respeito ao nome
Além disso, pode-se descobrir em sua poesia um conjunto de qualidades que a tornam distinta. É o que se constata neste poema que leva por título “perdoa”:
o tempo, água de chuva, / remanesce poça; logo, eu / meto a língua nos vãos / das pedras portuguesas / arrasto papilas no asfalto / sorrio ocre de terra batida / garimpo e bebo dessa / saliva de deusa, pois / o presente, cal virgem, / empapa a boca, pesa / na boca do estômago / e o futuro, sol imóvel, / resseca os olhos, arde / tudo o que é delicado / e o passado, herói fácil, / evangelista da falta, ele , / o passado é minha sede / percebe? moro nessa / efervescência de vaga quebrada / mendigo e bebo, / mesquinho e bebo: / isso se impõe! / isso se impõe! / isso me imponho…
III
Outra maneira de ver este livro é aceitá-lo como o resultado de uma evocação da infância, ou seja, encontrar o menino que o poeta ainda traz dentro de si. E isso ele o faz de maneira harmoniosa e metódica. Como se verifica neste poema que leva por título “jirayinha”:
foi esse menino / quem escreveu / meu livro, não eu / – eu nasci depois / esse menino, não, / não eu, viveu / o livro, esse menino, / antes que eu fosse, / antes que eu fosso / esse menino, / veja, ele sorri, / impune, / com essa espada / e essa armadura / de plástico, ninja / vermelho, sim, ele / será derrotado / o suficiente / para que existamos / ele sorri, intacto, / naturalmente, pois / quem antes do / livro? não eu / quem antes do / mundo? não eu / quem antes da verdade? e / não, eu nasci depois / eu sou tantos / meninos / mortos.
IV
Duanne de Oliveira Ribeiro (1987), nascido em São Paulo-SP, além de jornalista, escritor e pesquisador, é mestre em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP). Em 2025, defenderá na USP tese de doutoramento em que propõe uma arqueogenealogia da informação, referenciada no filósofo francês e historiador das ideias Michel Foucault (1926-1984) e outros; na dissertação de mestrado, discutiu processos socioculturais de construção do saber, a partir do fenômeno da sobrecarga de informação. Está também fazendo uma pós lato sensu em Filosofia Intercultural na Universidade de Passo Fundo-RS.
Formado em Jornalismo pela Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos-SP, e em Filosofia pela USP, é pós-graduado em Gestão de Projetos Culturais pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), núcleo de pesquisa vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, onde desenvolveu um artigo que, com instrumentos do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), analisou a visão de cultura formada nas páginas de um jornal paulistano. É autor também da novela Trindade (São Paulo, Gueto Editorial, 2020). Em ficção, foi um dos selecionados da segunda antologia Ficção Científica do Brasil com o conto “Sine Wave”, hoje reescrito, e publicou a novela Nikolai e Nataniel na revista Humanidades em Diálogo.
É analista de Comunicação do Itaú Cultural e editor-chefe da revista Úrsula, publicação on line de cultura, filosofia, educação, política e ciência (www.revistaursula.com.br). Mantém o blog duanneribeiro.info e escreve eventualmente para publicações como Cult, Bravo e Digestivo Cultural. Como jornalista, atua há mais de dez anos no campo cultural, tendo produzido resenhas, críticas, reportagens, ensaios e entrevistas com personalidades significativas para a história cultural do País.
***
Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros