Da Estrutura do Tempo Perdido | À sombra das raparigas em flor: frases

Crítica Cultural

Da Estrutura do Tempo Perdido é uma série a partir de leituras da obra de Marcel Proust. A ideia é mapear relações internas entre os trechos do livro, revelando a sua arquitetura. Uso a edição da Biblioteca Azul.


Nas páginas 112 e 113, um paralelo em torno da circulação dos jeitos de falar. Na primeira:

[…] segundo a bela expressão popular, de que não se conhece o autor, como acontece com as mais famosas epopeias, mas que, como elas e contrariamente à teoria de Wolf, teve certamente algum (um desses espíritos inventivos e modestos que aparecem todos os anos, que fazem achados tais como “pôr um nome numa cara”, mas que não dão a conhecer o próprio nome), eu não sabia o que estava fazendo.

Na segunda:

Quando a sra. Swann voltava para junto das suas visitas, nós ainda a ouvíamos falar e rir, pois mesmo diante de duas pessoas, e como se tivesse de se haver com todos os ‘camaradas’, ela elevava a voz e dizia frases, como tantas vezes vira a ‘patroa’ fazer no pequeno clã, nos momentos em que aquela ‘dirigia a conversação’. Como as expressões que tomamos de empréstimo aos outros são, pelo menos durante algum tempo, as que mais gostamos de empregar, a sra. Swann escolhia ora as que aprendera de pessoas distintas que o marido não pudera deixar de apresentar-lhe (dessas é que tomara o maneirismo que consiste em suprimir o artigo ou o pronome demonstrativo diante do [objeto] que qualifica uma pessoa), ora mais vulgares[,] por exemplo: ‘É um nada!’, frase favorita de suas amigas) e que procurava inserir em todas as histórias que gostava de contar, segundo um hábito adquirido no ‘pequeno clã’. Em seguida aprazia-lhe dizer: ‘Gosto muito desta história’, “Oh! Confesse que é uma bela história!’, o que lhe vinha, por parte do marido, dos Guermantes, a quem ela não conhecia.

Em ambas as passagens, retrata-se a circulação das frases, que se destacam dos seus criadores – anônimos, no primeiro caso, ocultos, no segundo – e são executadas por outros indivíduos. O comportamento de Odette, a sra. Swann, se pode soar frívolo, inautêntico, não obstante se equipara ao acolhimento de expressões ancestrais: de um lado e do outro, o narrador e a personagem são como que veículos de conteúdos que os transcendem. O ponto de vista de Proust lembra o sentido original de meme – definido por Richard Dawkins como o equivalente informacional do gene – e pode nos levar a um passo impor a visão depreciativa que podemos ter de Odette à nossa própria relação com a cultura (o quanto falamos de empréstimo?) e forçar uma reavaliação positiva da sra. Swann (pois emprestar é um dos modos de constituição da linguagem).

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