Rosália Duarte: “Precisamos nos formar para lidar com a onipresença das imagens”

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Publicado originalmente no site do Itaú Cultural

Saber aonde se quer chegar, “tratar a quantidade com qualidade” e escapar do controle do algoritmo são alguns dos conselhos da pesquisadora Rosália Duarte para educadores que queiram trabalhar com o audiovisual nas salas de aula. Nesta entrevista, a autora do livro Cinema & educação – além de cofundadora da Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual (RedeKino) e editora da revista Educação on-line – fala sobre como, apesar das muitas mudanças, os princípios do mundo da imagem e do som se mantiveram, e ainda é importante “saber avaliar, apreciar, fazer julgamentos, selecionar o que vale e o que não vale ser visto”, sabedoria não só aplicável por quem pesquisa ou leciona, mas que é fundamental, sugere ela, para todos nós como espectadores da sétima arte.

Fale um pouco sobre o seu trabalho atual com cinema e educação, e quais são as temáticas que lhe interessam neste momento da sua carreira, tendo em vista a sua produção anterior.

Tenho estado atenta aos impactos provocados pelas tecnologias digitais nas relações entre cinema e educação, com o acesso a um grande volume de produtos audiovisuais, via plataformas de streaming, e também com a facilidade de uso de recursos tecnológicos relativamente sofisticados de produção e edição de material audiovisual. Essas mudanças exigem multiletramentos, e precisamos pensar formas de prover esses letramentos, inclusive os que estão previstos no Plano Nacional de Educação Digital (PNED). Acho que precisamos incluir esses multiletramentos nos contextos educativos.

Seu livro Cinema & educação completou 20 anos em 2022. Nesse período, com a ascensão do streaming, o consumo audiovisual se modificou completamente. Como as perspectivas do livro – e dessa relação entre cinema e educação – se alteram também?

Ainda que o mundo do audiovisual seja outro hoje, os princípios fundamentais desse livro seguem válidos. Quero dizer, seguimos precisando formar as pessoas para lidar com a onipresença das imagens, para conhecer o cinema, para ampliar sua capacidade de diálogo com a linguagem audiovisual, para escolher o que querem e o que não querem ver e também o que pode ou não ser visto pelas crianças. O cinema mudou muito, tecnologicamente e no que diz respeito a acesso, e segue sendo importante conhecê-lo bem, como arte e como indústria de entretenimento. Segue sendo relevante saber avaliar, apreciar, fazer julgamentos, selecionar o que vale e o que não vale ser visto para não cair em armadilhas publicitárias.

Na apresentação do livro, você fala que escreve de três pontos de vista: professora, pesquisadora e espectadora. Como muda, digamos, a postura diante dos filmes em cada uma dessas três situações? O que cada uma pede?

Como professora, cabe a mim compartilhar com meus alunos conceitos e critérios de avaliação de qualidade, perspectivas teóricas que favoreçam o olhar analítico e crítico, com respeito e pluralidade de visões. Como pesquisadora, cabe a mim formular sempre novas perguntas e desenvolver metodologias adequadas para compreender os problemas que se apresentam nesse campo de estudos. O ponto de vista de espectadora é o da cinefilia: apreciar, avaliar, conhecer, acompanhar as inovações e testemunhar as rupturas estéticas.

O que você sugere ao professor que quer transitar dessa posição de espectador para a de alguém que quer usar o cinema na sala de aula?

Ver muitos filmes, de preferência na sala de cinema, estudar, tomar notas, debater, criar seu próprio conjunto de critérios de avaliação, definir objetivos claros para levar filmes para sua sala de aula.

Unindo as duas pontas da entrevista até agora, como acha que o streaming pode ser bem usado na educação? O que esse tipo de plataforma permite? 

Plataformas permitem selecionar uma ampla gama de material em torno de aspectos relevantes para o debate em cinema e educação: por exemplo, comparar diferentes cinematografias e analisar rupturas e opções estéticas inovadoras; comparar diferentes formas de abordar temas complexos (violência, guerra, racismo, condição feminina, crise climática, inteligência artificial, futuro etc.); colocar em diálogo um conjunto de filmes que tratam de um mesmo contexto histórico para opor ou compor diferentes visões de um mesmo “fato histórico”; comparar abordagens documentais e ficcionais acerca de um mesmo acontecimento; conhecer e valorizar a alteridade (o olhar daquele que vivencia o problema) etc. Ensinar os alunos a buscar visões diferentes em torno de um mesmo tema.

Ou seja, tratar a quantidade com qualidade, procurando escapar do controle do algoritmo, que conduz sempre a mais do mesmo.

Pode compartilhar experiências suas como educadora que relacionaram cinema e educação? Quais filmes você escolheu, como realizou essas práticas?

Propus, certa vez, compararmos diferentes adaptações literárias brasileiras, pesquisando como foram feitas e construindo critérios compartilhados de avaliação de qualidade. Lemos e vimos Vidas secasMemórias do cárcere e A hora da estrela, entre outras obras.

Costumo exibir Rashomon, de Akira Kurosawa, em disciplinas de pesquisa na pós-graduação, discutindo a atenção a ser dada aos diferentes pontos de vista em torno de um objeto de estudo e os riscos de uma conclusão apressada, baseada em um único ângulo. Faço o mesmo com Janela da alma, do João Jardim e do Walter Carvalho; 35, do Eduardo Escorel; Santo forte, do Eduardo Coutinho; e Ônibus 174, do [José] Padilha, discutindo a natureza do conhecimento e as diferentes formas de acesso à realidade.

Nós disponibilizamos coleções na nossa plataforma de streaming, a IC Play, com foco no tema de ancestralidades indígenas e negras. A partir dessa lista e desse tema, você sugeriria abordagens para a sala de aula?

Para sugerir abordagens, eu teria que, antes, definir objetivos pedagógicos e depois avaliar quais filmes poderiam atender aos meus objetivos. Não é o filme que define o problema a ser discutido; é o problema que define a escolha do filme e a abordagem mais adequada. Minha sugestão é que a pessoa que for selecionar um filme desses para integrá-lo em algum contexto educativo defina com bastante clareza e segurança seus objetivos pedagógicos e, depois, selecione aquele(s) que esteja(m) de acordo com os objetivos definidos. Isso vale para a formação estética audiovisual, o multiletramento crítico (educação digital), a abordagem de conteúdos curriculares e o debate político-ideológico ou discussão de temas controversos. É necessário, antes de tudo, saber aonde se deseja chegar para selecionar o filme que melhor pode contribuir na travessia.

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