“Ela levantou a mão e falou ‘Eu sou Maria’? pra vocês saberem? Pra vocês darem nome pra um objeto?”, diz a menina de coque na cabeça ao menino de camisa de botão listrada lilás para dentro da calça. Vê-se que ela narrava uma pendenga entre evangélicos e católicos. O rapaz comenta concordando: “É que se aprende isso de pequeno e continuam com essas superstições”. Talvez ele não tenha dito bem com esses termos. Enfim. Depois desse argumento que não caberia menos a Ateia, ela conta como foi importunada por não comer carne: “Eu falei: tia, você respeita a minha religião e eu respeito a sua. Mas a senhora quer discutir? Vamos pegar a Bíblia e discutir com a Bíblia aberta”. A tia teria retrucado: ah, mas eu tenho tantas décadas de evangelismo. “Então vamos discutir com a Bíblia aberta? Já que a senhora leu a Bíblia tantas vezes, né?” Disse que foi lá e abriu em tal parte e estava escrito que Jesus mandou ninguém comer nada que tivesse sangue. “Sabe o que é o porco? O porco é um lixeiro. A senhora tá comendo um lixeiro. Mesma coisa o camarão. A pessoa tá comendo os dejetos de todo mundo na praia”. Segundo a moça de coque isso tudo foi um arraso, a tia ficou muito atordoada.
Logo a conversa transita para uma discussão teológica intramuros evangélicos. Ela constrói outro personagem que opõe a si: “’Ah, mas vocês não acreditam no Espírito Santo’. Aí eu começo a rir. Falo: má é cada uma! Como eu não acredito no Espírito Santo? Só que é que nem eu falo: quem disse que Deus leva em consideração que você só tem o Espírito Santo se você sai pulando, chupa a bala Halls, pega a vassoura e voa? Quem garante isso? Você só tem algo se for assim, se você ficar gritando e pulando igual um doido, todo mundo com medo de você, sem saber o que é aquilo”. O rapaz nota que certo livro da Bíblia não diz que TODAS as pessoas estavam pulando em certa ocasião que, imagino, sustente essa interpretação negada pela menina. Ela acrescenta que em outro ou no mesmo livro bíblico, pelo que pude entender, fulano até gritava ou pulava, mas “falava de forma que tooodos entendiam. Então eram línguas locais. Era língua daqui da Terra, não era língua do beléleu. Não é um negócio de chupa a bala Halls, pega a vassoura e voa”.
Os desentendimento com outras designações iam além do falar em línguas ou do receber o êxtase divino de formas performáticas demais. Outra questão é que haveria uns crentes muito peguentos. “Às vezes tem um pessoal amigo meu que diz: ‘Posso orar por você?’ Eu digo: ora, mas não põe a mão. Não põe a mão. Não põe. Pode orar, se quiser segurar na minha mão, beleza, mas por a mão na minha cabeça não”. O rapaz acrescenta: “Por a mão na cabeça só o meu cabelereiro ou o pastor”. Ela retruca, reeditando Augusto dos Anjos sem saber talvez, e com menos talento: “E olhe lá, viu! Que eu sou bem assustada. Eu sou meio assustada, porque sabe aquela história, né? A mão que te abençoa é a mesma que te amaldiçoa. Mão na tua cabeça, fio, é algo muuuito sério. É muito sério isso”. O rapaz se repete: “Eu sei. Por isso que eu só tenho essa concepção, ou meu pastor ou meu barbeiro. Só”. Ela continua novamente quase como senão tivesse sido interrompida: “O cara tem de passar meeega credibilidade pra você”.
Ela volta ao que parece ser o cerne da sua ética: aferrar-se à leitura da Bíblia. “Com o tempo, se você for vendo a Bíblia, você vai começar a ver. Que nem, o pessoal fala pra mim assim: ‘Ah, mas você não bebe? Pode beber, Jesus Cristo fez vinho’. Mas fala o teor alcoólico?”. Ela pergunta retoricamente e responde de imediato e em um tom mais sério: “Não. A gente que inventou de tacar álcool dentro das coisas”. O rapaz sempre fático: “A fermentação já tem o álcool natureba, né. Hoje em dia com os esquemas de produção, escala…”. Eles apontaram problemas diferentes, na verdade: ela culpa uma má interpretação do que seria claríssimo no texto bíblico. Ele meio que culpa o capitalismo.
A garota prossegue: “Eu bebo cerveja sem álcool. Porque eu tenho um problema renal e bebo sem álcool. Só que eu não posso fazer disso um vício, porque a gente deve fugir da Aparência do Mal. Que que adianta, o cara vai falar bem assim pra mim, tá com cheiro de cerveja de qualquer forma”. Seria deus ou Jesus esse “cara”? O exemplo que dá lembra a parábola das lanternas. Ainda ela: “Tudo a gente tem que fazer e tem que ter cuidado. Aquela história: eu faço todas as coisas, porém nem tudo me convém”. Então chegou a estação, e eles se foram.