Ainda não havia Dona Onete. Após concluir a 5ª série em Belém, entre 1950 e 1955, a adolescente Ionete da Silveira Gama começou a dar aulas em uma escolinha no interior de Igarapé-Miri. Tinha então 16 anos. Depois, já formada no magistério e empregada na mesma cidade, ela ganhou um novo “nome”: professora Ionete. Trabalharia em Miri até se aposentar, aos 62 anos. Nesse período, ao passo que se engajava na política, seja na luta sindical, seja na gestão cultural, desenvolveu uma prática de ensino afinadíssima com a cultura local, atenta aos alunos e ligada a um braço artístico: o grupo Canarana.

A música já estava na sua vida, mas ela deixou uma trajetória profissional nesse sentido para mais tarde: “Eu sempre disse para umas pessoas que diziam que eu sabia cantar e que ia ser alguém”, contou ela ao jornal O Liberal, “que eu queria primeiro ser professora, me aposentar, para ter o meu dinheiro, porque a gente não sabe se o sucesso vem”. Por outro lado, as canções entravam nas aulas – serviam de ferramenta para instigar a classe –, assim como a cultura popular, cujos saberes a professora recolhia em pesquisas pelo município. Lecionava matérias sob medida para tal: estudos paraenses e história.

Neste texto, dois antigos alunos seus – ambos tiveram aulas com Ionete na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em Igarapé-Miri – relembram como foi ter estudado com ela: Renato Pinheiro Sinimbú, músico e historiador, que sublinha a sua leveza, independência e visão crítica sobre a educação; e Benedito Wagner de Almeida Corrêa, professor de educação física, que foi parte do Canarana e destaca nele um rigor que traz consigo até hoje. Nos depoimentos, os frutos do incentivo de Ionete à arte e à cultura são evidenciados.

Renato Pinheiro Sinimbú: “Uma contribuição de vida”

Sou historiador, então costumo analisar as coisas tentando ver o contexto da época, tentando não cometer anacronismos, não pensar com os olhos de hoje, mas pensar “naquela época”. O período em que a gente começou a estudar com [Ionete], no ginásio, na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em 1984, ainda era um período muito rígido em Igarapé-Miri, e a gente está falando de um período anterior à redemocratização.

Nesse contexto, ela fugia dos moldes do professor rígido, que cobra excessivamente dos alunos – era isso que os pais, em sua maioria, naquela sociedade tradicional, esperavam do professor. E ela não seguia esse estereótipo, era uma pessoa muito leve, que conversava bastante, que sempre tentava compreender. Quando você tinha feito uma avaliação, escrito algo um pouco diferente, ela chamava você na mesa dela, tentava considerar alguma coisa que pudesse ajudar. Isso já era um grande diferencial.

Às vezes, parecia que ela era uma professora boazinha, mas, na realidade, no fundo, no fundo, ela estava preocupada com questões mais profundas ligadas à educação. 

A maneira como ela se comportava em sala de aula tem muito a ver com a vida que ela levava. Ela teve que se tornar uma mulher independente muito cedo, quando ficou viúva. Ela assumiu esse protagonismo como mulher, como educadora – e isso, naquela sociedade ainda bastante conservadora, não era muitas vezes bem-visto.

Mas era uma pessoa que se relacionava muito com os agentes culturais aqui de Belém. As pessoas iam e ficavam na casa dela. Ela tinha uma visão muito ampla sobre a cultura, e em todo momento isso transparecia nas suas aulas. Ela buscava fazer links, tentando exemplificar na prática, cantarolando músicas, contando histórias. E a disciplina dela na época, estudos paraenses, era, como posso dizer, bem favorável ao que ela gostava.

Se tem uma coisa que aprendi com Dona Onete, foi valorizar a cultura, a cultura da região onde nós vivemos, aqui da Amazônia. Tentar estudá-la, conhecê-la, pesquisá-la.

Hoje sou pesquisador, estou terminando um doutorado em história social da Amazônia, exatamente sobre o período e a região em que [Ionete] se criou. Ela foi uma das grandes incentivadoras para eu trilhar esse caminho, e agradeço muito. Ela me mostrou o quanto é importante registrar isso aí e tornar de amplo conhecimento para as futuras gerações.

Dona Onete é uma mediadora cultural. É uma artista com conhecimento e que consegue transformá-lo em poesia e música, de uma forma muito inteligente e fácil de consumir. Assim como Pinduca e Verequete, ela é muito importante para a nossa cultura, aquela cultura tradicional aqui da Amazônia. Esse é o grande trunfo, sua grande contribuição artística – uma contribuição de vida que ela oferece à sociedade.

Benedito Wagner de Almeida Corrêa: “Fazer o melhor, para mostrar o melhor”

Como professora, posso dizer que [Ionete] era uma excelente profissional. Ela hoje tem seu legado no município [de Igarapé-Miri], em que é muito reconhecida pela prática que desenvolveu com os alunos. Eu e todos os meus colegas da época, sempre que temos a nossa rodada de conversa, tocamos no assunto do quanto foi importante a disciplina de estudos paraenses, que veio a valorizar mais ainda a cultura da região.

Ela foi minha professora de estudos paraenses, na qual desenvolvemos a parte da dança e da cultura local, no ano de 1987 ou 1986, nesse período, na escola Aristóteles Emiliano de Castro. Como ela trabalhava muito a parte cultural, a aula se tornava diferenciada. Ela tinha o domínio da turma e fazia com que todos participassem. Trabalhava a teoria e a prática ao mesmo tempo. O trabalho ficava mais dinâmico, mais prazeroso.

Eu tinha um pouco de conhecimento de dança também e fui me aperfeiçoando, por meio do incentivo que [a professora Ionete] deu. Naquele momento, além de professora, ela era coordenadora de um grupo que se chamava Canarana. Eu tive o privilégio de fazer parte dele, na época tinha 18 para 19 anos. Como [já tinham] o domínio, ela aproveitava [estudantes] para o grupo e a maioria [dos integrantes] eram alunos dela.

A parte da dança, para mim, foi muito prazerosa, muito importante, porque me fez sentir melhor, mais leve. O carimbó é dançado de várias formas, cada um tem o seu jeito, mas o grupo dela era instrumental, era percussão, não era colocado disco, tinha o batuque, era muito legal. Eu participava dele, tinha toda uma responsabilidade – pois, para estar nele, tinha que ser bom e, para ser bom, tinha que se dedicar: era ensaio, ensaio, ensaio em cima de ensaio, que é para tudo sair perfeito.

[Integrar o Canarana] era muito cobiçado. A peneiragem que a gente fazia, para passar tinha que ser bom. Ela dizia assim para as meninas [inscritas na seleção]: “Se não souber fazer o rebolado, você não vai, você não passa na peneira”. Isso [fica] até hoje. As amigas que eram do grupo – a gente – têm esse molejo, porque aquilo ficou marcado.

Para formar o grupo, [ela] passava a coreografia e daí ia lapidando: “Na passada, a batida é essa…”. Sempre trabalhava dessa forma, no conjunto. Mas, para te passar para conjunto, era individual: você ia dançar para [ela] ver qual era a sua habilidade e ir fazendo a correção. Assim ela ia trabalhando. Até com relação à forma de passar a coreografia, ela sempre se preocupou em fazer o melhor, para mostrar o melhor.

Além da dança, da responsabilidade, do respeito, agradeço a ela por ter me dado essa oportunidade de participar do grupo e poder ter sido aluno dela. Para mim, é muito gratificante poder, hoje, fazer esse relato, porque acredito que só coisas boas é que ficaram e sempre ficarão na memória, no aprendizado.

Hoje estou também atuando na área da educação, como professor de educação física, área em que sou bacharel. Como eu já gostava da dança, que está inserida no conteúdo programático do curso de educação física, [compor o Canarana] foi algo que me influenciou a me profissionalizar nesse campo. Amo o que faço.

[É perguntado se no presente ainda dança] Danço. E como! Carimbó, sirimbó, retumbão, valsa, merengue, cúmbia… O que tocar! Mas por prazer. Estou focado na escola de arte. E, quando há festas juninas, sou solicitado pelas escolas para montar quadrilha, danças.

[As práticas de Ionete continuam até hoje], mas com outros profissionais. O legado ficou, e a gente vai desenvolvendo de acordo com o que foi adquirido de conhecimento. Hoje a gente desenvolve as habilidades aqui na escola de arte da mesma forma praticamente, só vai lapidando o aluno para a hora da apresentação. Se aprendi que ser profissional é ser bom, tenho de ensinar o meu aluno a ser bom também.

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