“Fico em casa. Se aparecer algum enxadrista, jogarei xadrez; se apenas jogar cartas, cartas. Se não vier ninguém, atiro-me a compor um poema de cabeça” – trecho de Memorial de Aires, de Machado de Assis
Esta é uma recriação do xadrez com base no universo de Machado de Assis. As tradicionais peças são metamorfoseadas em personagens machadianos; suas relações, confrontos e percursos no tabuleiro se inspiram nas histórias do escritor. Este é um jogo para leitores de Machado – que podem reencontrar seus enigmas e emoções traduzidos na partida – e não leitores – que podem achar aqui um meio lúdico de vivenciar a obra do autor.
Machado + xadrez
Machado teria aprendido a jogar xadrez entre 1862 e 1865. Há registro de que, em 1868, ele visitava o Clube Fluminense para jogar. Em janeiro de 1880 – às vésperas do lançamento de Memórias póstumas de Brás Cubas, que seria publicado de março a dezembro desse ano como folhetim na Revista Brasileira –, Machado participou do primeiro torneio de enxadristas amadores no país. Apesar de uma vitória memorável – contra o escritor Charles Pradez –, nosso homenageado terminou perdendo a competição por pontos.
Já em 1883 e 1884 – tendo, neste último ano, publicado a coletânea de contos Histórias sem data –, Machado cumpriu a função de juiz em campeonatos do Clube Beethoven. Ainda se destaca no seu envolvimento com o xadrez o interesse por resolver – e até inventar – problemas do jogo. Entre 1877 e 1880, o autor respondeu a desafios dos periódicos Ilustração e Revista Musical. Em 15 de janeiro de 1877, teve publicado um enigma de sua própria lavra, considerado o primeiro problema enxadrístico feito por um brasileiro.
Peões e bispos, cavalos e torres, reis e rainhas não tiveram, portanto, relevância pequena no seu cotidiano – e acabaram por integrar a sua obra literária. Como diz Victor da Rosa em “O cálculo e o enigma: Machado de Assis e o jogo de xadrez”: “Além de mencionar o xadrez como tema, Machado entranha na própria forma de suas narrativas certas ideias, imagens e raciocínios que são mais familiares ao enxadrista do que ao escritor”.
Esse artigo analisa a relação xadrez e literatura em vários momentos da obra de Machado. O escritor, recorrendo a personagens enxadristas ou a imagens emprestadas do universo do xadrez, fala sobre paciência e cálculo, sobre desafio e mistério. Mesmo em momentos nos quais o jogo não é citado, afirma o artigo, o enxadrista do Cosme Velho parece jogar com o leitor, movendo as peças com astúcia, prevendo investidas, armando o bote.
Assim, o leitor, diante de um livro de Machado, o teria como um oponente do outro lado da mesa. O autor nos fita através dos seus pincenês, seus cabelos penteados para trás, sua barba desalinhada, comprida e grisalha. Sua expressão não entrega nada. Como você joga?
Como jogar o Maxadrez
O Maxadrez é muito próximo do xadrez: bastam o tabuleiro e o conjunto de peças comuns. As peças – peão, bispo, torre, cavalo, rainha e rei – têm os mesmos movimentos do jogo-mãe. O que se transforma são posições de algumas peças, os efeitos da captura de outras peças e, principalmente, o direcionamento do jogo: não se trata aqui de pôr o rei abaixo; cada peça tem o seu próprio caminho de vitória, com exceção do rei e dos peões. Dessa maneira, é como se múltiplos jogos fossem jogados no mesmo jogo.
Os jogadores decidem se o jogo é encerrado após o objetivo individual de uma peça ser atingido. Como alternativa, pode-se somar pontos para cada objetivo alcançado e definir um vencedor com o placar final. Outra forma é anotar em papéis os objetivos e sortear qual deles cada jogador deve cumprir (de forma semelhante ao War). Nesse caso, o jogador só vencerá se concluir a missão que lhe foi atribuída no sorteio.
Sugere-se também jogar por jogar.
Personalidade das peças
Veja abaixo a intertextualidade, o objetivo e o comportamento de cada peça:
Peões – vários
Os peões representam diferentes personagens, de acordo com o ponto de vista de cada peça. Eles não têm chance de vitória, mas compõem as táticas alheias. Esse recurso emula o perspectivismo de Machado – suas obras se caracterizam por muitos pontos de vista internos, além de comportarem muitas interpretações.
Disposição: Casas iniciais normais.
Movimento: Anda-se para a frente e para os lados, sem recuos, uma casa por vez. No primeiro turno, pode-se andar duas casas. Capturam-se peças na diagonal.
Dinâmica: são leitores ou vermes para Brás Cubas; loucos ou cidadãos para Simão Bacamarte; soldados para Quincas Borba; figuras capitolinas para Bentinho (para Capitu, ela mesma, são indiferentes – ela efetiva o seu próprio jogo.)
Rei – Brás Cubas
O autor está morto! Vida longa ao autor! Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado dá voz a um memorialista defunto, analítico e ferino, que dedica sua obra ao primeiro verme que roeu suas carnes e dispensa petelecos aos leitores.
Disposição: Casa inicial normal; a peça deve estar caída no tabuleiro.
Movimento: Livre para qualquer direção, uma casa por vez.
Dinâmica: Está fora do jogo, estando dentro dele. Não pode ser tirado do jogo por nenhuma peça. Se atingido por um peão – nessa situação, um verme –, o jogador perde um turno. Quando atinge uma peça qualquer – vista por ele como um leitor –, o jogador deve dizer: “Piparote!”, e retirá-la do jogo.
Rainha – Capitu
Personagem decisiva de Dom Casmurro, Capitu é até hoje uma incógnita, deixando em aberto a interpretação do livro e a sua personalidade. Maxadrez representa um encontro entre imagens díspares de Capitu, que se acercam e não se anulam.
Disposição: Casa inicial normal.
Movimento: Livre para qualquer direção, quantas casas quiser.
Dinâmica: Para vencer, o jogador deve posicionar a sua Capitu numa casa contígua à Capitu adversária. Se esse encontro ocorrer, as peças são fixadas nas posições de então, não podendo mais ser movimentadas por nenhum dos jogadores.
Bispos – Simão Bacamarte
O médico psiquiatra Simão Bacamarte, de O alienista, quis tratar a loucura de toda uma cidade e acabou se vendo obrigado a trancafiar no hospício todos os cidadãos. Ao fazer isso, percebeu sua própria loucura; soltou a todos e internou a si.
Disposição: Casa inicial normal.
Movimento: Anda-se em diagonal, quantas casas quiser.
Dinâmica: Não pode ser retirado do jogo; ao ser atingido, contudo, o jogador perde um turno. Para vencer, deve capturar todos os peões adversários – pensados nesse caso como loucos; se isso ocorrer, ele próprio é retirado do jogo e todos os peões retornam. Caso algum peão adversário tenha sido capturado, Simão pode recolocá-lo no tabuleiro capturando qualquer outra peça e trocando-a pelo peão.
Cavalos – Quincas Borba
Para o filósofo Quincas Borba (mas não, quiçá, para o cão Quincas Borba), o mundo se divide em vencedores e derrotados, em uma disputa pela vida sempre justa na medida que é uma disputa pela vida. Em uma guerra por terra e batatas, diz, não há exterminados, pois sua derrota integra a sobrevivência de quem leva os legumes.
Disposição: Casa inicial normal.
Movimento: Anda-se em L; peões capturados passam também a andar em L.
Dinâmica: Ao atingir os peões alheios – considerados como soldados –, Quincas integra-os ao próprio grupo (os peões devem ficar caídos no tabuleiro). Para vencer, Quincas deve capturar os Quincas adversários, em pessoa (ou em cavalo) ou por meio dos peões capturados. Se os jogadores disporem de batatas, o vencedor as recebe.
Torres – Bentinho
“Para atar as duas pontas da vida”, Bentinho reproduz a casa da Rua Mata-Cavalos, onde morava quando jovem; descobre, todavia, que lhe “falta eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (depois, na última página, tenta definir o que, afinal, foi Capitu). No Maxadrez, Bentinho como que une os lados do tabuleiro e ocupa um local ideal.
Disposição: As peças de cada jogador ficam no campo adversário.
Movimento: Anda-se em linhas horizontais ou verticais, quantas casas quiser.
Dinâmica: Para vencer, o jogador deve levar suas torres às casas do rei e da rainha no lado oposto à sua posição inicial, “retornando” ao campo que lhes seria natural. Se isso ocorrer, as peças são fixadas nessas posições e não podem ser retiradas ou movimentadas. Se Bentinho for atingido, ele fica fora de jogo por um turno; depois, o jogador pode recolocá-lo gastando mais um turno para tal e dispondo-o em uma das duas casas iniciais. Se Bentinho atingir uma peça – considerada como Capitu ou imagem de Capitu –, essa peça não poderá ser movimentada por dois turnos.
Atenção: as peças que possuem duas unidades (bispos, torres, cavalos) podem atingir os seus objetivos tanto com ambas quanto com apenas uma delas.
Dicas de jogo
Alguns meios de tornar o Maxadrez mais prático e divertido:
- Não deve ser um problema para os peões, mas, se não for possível deixar o rei caído no tabuleiro por conta do tamanho das casas, não façamos caso.
- Se você dispuser de peças de outra cor que não brancas e pretas – por exemplo, as de um conjunto de Ludo –, use-as para os peões capturados por Quincas.
- Faça uma Casa Verde, um asilo de loucos de Bacamarte. Queremos dizer: separe, no espaço fora do jogo, as peças capturadas pelo doutor e as que não foram.
Por fim, um aviso que é um convite: o Maxadrez é um experimento e deve ser testado e aprimorado conforme vá sendo jogado. Deixe-nos saber como foram suas partidas!
Ficha técnica
Concepção e texto: Duanne Ribeiro
Conselho editorial: Carlos Costa, Fernanda Castello Branco e Heloísa Iaconis