João Batista Júnior: da inspiração das enchentes e de reimaginar a cidade

Entrevistas

[texto originalmente publicado no site do Itaú Cultural]

Belo Horizonte (MG), várias cidades do estado do Rio de Janeiro, São Paulo – capital e Baixada Santista: esses são exemplos de localidades que em 2020 sofreram o impacto de fortes chuvas que paralisaram as atividades nesses lugares e causaram alagamentos, deslizamentos de terra, perda de vidas. Para além das abordagens jornalísticas, acadêmicas e políticas desse tipo de acontecimento, é possível encontrar um ponto de vista significativo sobre ele no teatro.

Na última semana de janeiro, a peça As Três Marias, do Núcleo Chicote de Língua – que surgiu a partir do Coletivo Estopô Balaio em 2011 –, foi exibida no Itaú Cultural. É uma montagem que aborda a questão das enchentes de forma lúdica, enxergada do ponto de vista de três crianças: Maria Melancolia, Maria Alegria e Maria Faminta, que esperam a mãe na parte de cima da casa, com a rua lá fora alagada.

Conversamos com um dos responsáveis pelo espetáculo, o diretor e dramaturgo João Batista Júnior, para que comentasse essas catástrofes que atingem as cidades brasileiras e como essa temática adentrou o trabalho dos dois grupos. Além disso, João fala da necessidade de mudar nosso urbanismo e do papel da arte nesse sentido: “Há uma disputa de território imagético, e isso nos interessa”.

Várias cidades brasileiras foram recentemente afligidas pelas chuvas. Os alagamentos e outras consequências causaram problemas de moradia, de transporte, de trabalho etc. Como vocês sentiram esses acontecimentos, de que As Três Marias é tão próximo?

As Três Marias é um espetáculo que nasce da atuação do Núcleo Chicote de Língua no Jardim Romano (bairro do extremo leste paulistano que sofre com enchentes até hoje). A partir dos depoimentos das crianças sobre a experiência com as enchentes a obra vai construindo sua dramaturgia. O espetáculo estreou há dois anos e ainda deparamos com as dinâmicas das águas que inundam a vida de famílias inteiras nas grandes cidades. É com tristeza que constatamos isso, mas também com um olhar que reconhece a força de invenção dessa gente que reinventa a vida todos os anos por causa das enchentes.

O que fazer? Do lado de cá, guardamos a tristeza e a revolta, mas precisamos seguir discutindo a cidade a partir de nosso trabalho. Qual cidade estamos construindo? Isso impacta diretamente a cidade que estamos criando para nossas crianças. Esse tema nos é caro pela memória do Chicote de Língua e por todas as crianças do Jardim Romano que ainda brincam com essas águas. Elas merecem mais… Muito mais do que a cidade oferece a elas.

As Três Marias aborda outros temas, como o longo percurso para o trabalho, as diferenças entre classes sociais. A chuva está sempre presente, dando espaço para a fantasia e também para falar de saudade, porque a enchente levou a avó. Como vocês chegaram a essas cenas e quais são os desafios de levar esses temas fortes com tanta leveza para as crianças?

A vida é complexa. Quando a criança não entra em contato com a dor que faz parte do viver, ela não consegue erguer força interior para lidar com a exclusão, a morte e a estratificação social. A poesia e a imaginação podem mais no diálogo com esses temas. Abrem espaço para o infinito que nos habita. As metáforas são usadas para fazer a criança mergulhar nas dinâmicas da vida e de exclusão na cidade de forma lúdica e gerar algum tipo de debate entre pais e filhos. Quem sabe novas consciências surjam? Quem sabe novos olhares sobre a cidade sejam exercitados? Quem sabe os “donos da cidade” acordem e quebrem as pedras de suas peles? Quem sabe podemos imaginar novas cidades para todos?

Por que esse tema inspira vocês? Sei que parte dos artistas é do Jardim Romano, que é afetado pela chuva. Como as atrizes e os outros envolvidos viveram essa temática?

Esse tema nasce na residência do Coletivo Estopô Balaio no Jardim Romano. O Chicote de Língua nasce lá dentro com o objetivo de trabalhar as narrativas das crianças sobre as enchentes. Atualmente, o Chicote de Língua se emancipou do trabalho realizado pelo Estopô. É a partir desse contexto que surge a dramaturgia de As Três Marias. Boa parte dos integrantes do Estopô e do Chicote é morador do bairro que viveu as enchentes. O elenco não viveu essa experiência diretamente, mas atua no bairro por meio de diversas ações socioeducativas criadas pelo Estopô.

A cultura e a educação são essenciais na criação de novos paradigmas urbanos. Pautar a questão dos rios é urgente para que São Paulo seja possível no sentido mais humano de cidade

No mesmo sentido: pelo que sei do trabalho de vocês, a pesquisa, a conversa com os moradores, a vivência informam essas peças. No caso de As Três Marias, como se dá isso?

Durante um tempo eu trabalhei com as crianças do Programa de Iniciação Artística da Prefeitura de São Paulo. Na época, elas relatavam constantemente sua experiência com as enchentes, assim como fabulavam o tempo todo a água. A lua refletida na rua, os peixes-vagalumes, o tubarão-árvore, o barco-geladeira são imagens que nascem dos depoimentos das crianças, através de jogos, entrevistas e muita brincadeira.

Seja de moradores conhecidos, seja por parte dos atores que compõem o Estopô Balaio e o Chicote de Língua, vocês tiveram depoimento de quem tenha sido afetado por essas últimas chuvas? Quais? Ainda: os fatos recentes ecoam aqueles que dão base para as peças?

As chuvas de fevereiro alagaram mais uma vez as ruas do bairro. Os relatos nos chegam de diversas formas: fotografias, ligações, postagem nas redes sociais dos moradores. Tudo vem como forma de denúncia e pedido de visibilização daquela situação.

Os problemas decorrentes da chuva persistem há gerações. Na peça, é referida uma opção urbanística que colabora, em São Paulo, para que seja assim: “Os donos da cidade construíram tudo em cima dos rios, então eles ficaram afogados”. Como vocês veem esse tema? Pelas suas pesquisas para as peças, vocês entreveem como melhorar essa situação?

Os estudos sobre o processo de urbanização de São Paulo nos revelam que a cidade enterrou os rios em privilégio de uma urbanização feroz que precisava ecoar a produção e a venda de veículos. As demandas geradas pelas fábricas, a migração nordestina em larga escala na década de 1950, entre outros fatores, fazem com que São Paulo cresça sem planejamento. Os rios dão espaço às ruas. Acho que precisamos mudar o modelo de cidade e convivência. Enquanto a cidade for apenas vista pelos olhos do mercado, não haverá espaço para um olhar mais humano e sensível.

Paradigmas precisam ser quebrados para que outros nasçam. Vivemos isso um pouco com as ciclovias. Elas mudam e alternam a dinâmica do transporte urbano, mas, no caso de São Paulo, é preciso agir sobre o pensamento. A cultura e a educação são instrumentos essenciais na criação de novos paradigmas urbanos. Pautar a questão dos rios é urgente para que São Paulo seja possível no sentido mais humano de cidade.

A natureza nos retorna à integração consigo. A cidade precisa dialogar com a paisagem natural para que possamos nos sentir “pequenos” novamente diante da natureza. Somos uma parte e não o todo. A arte em São Paulo cumpre um pouco, por meio do artifício, a função de nos prostrarmos diante de nossa condição humana e natural.

A temática social, a valorização do território, a preservação da memória – esses parecem ser interesses que atravessam a produção de vocês. Se concordam, por que acham relevante trazer esses temas ao teatro? Nesse sentido, como veem a relação política/teatro?

A vida se dá no confronto. Confronto, aqui, penso que é estar de frente para o outro. O teatro, essencialmente, nos coloca diante do outro e das questões do mundo. Toda a arte, por si só, é política, visto que nos levanta diante do mundo. O teatro pode espelhar aquilo que está excluído do imaginário da humanidade para que possamos incluir. Quando incluímos algo como imagem dentro da gente, temos a chance de dar um lugar àquilo e, assim, fazer que algo seja modificado.

Há uma disputa de território imagético, e isso nos interessa. Alargamos nosso olhar para o fenômeno da vida e suas manifestações, que se espalham no território urbano e na memória. Parafraseando a dramaturgia [de As Três Marias], que possamos olhar “para além da linha d’água”.

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