[Almas Mortas, Nikolai Gogol, páginas 146-150, Nova Cultural, 2003] Encontrei um acumulador no Gogol (fica a dica para a Discovery):

“Tchítchicov entrou no vestíbulo amplo e escuro, do qual soprava um bafo frio, como dum porão. Do vestíbulo, passou para um aposento, também escuro, parcamente iluminado por uma luz que se filtrava através duma larga fresta embaixo da porta. Abrindo essa porta, ele encontrou-se finalmente na claridade, e ficou estarrecido diante da desordem que se descortinou aos seus olhos. A impressão era de que estavam raspando os soalhos da casa inteira, e tinham amontoado ali, provisoriamente, toda a mobília. Sobre uma das mesas havia até uma cadeira quebrada, e, ao lado dela, um relógio de pêndulo parado, no qual uma aranha já havia tecido sua teia. Ali mesmo, encostado do lado contra a parede, havia um armário cheio de prataria velha, frascos de cristal e porcelana chinesa. Sobre o bureau marchetado de mosaico de madrepérola, que em parte já se desprendera e deixara atrás de si apenas uns pequenos regos amarelos, cheios de cola, havia um porção de coisas de toda espécie, um monte de papeluchos cobertos de escrita miúda, seguros por um peso de mármore em forma de ovo, um livro muito antigo encadernado em couro vermelho, um limão todo seco, do tamanho de uma avelã, um braço de poltrona quebrado, um cálice com um líquido não identificado e três moscas coberto por uma carta, um pedacinho de lacre, um farrapo de pano apanhado não se sabe onde, duas penas sujas de tinta, secas como se fossem tísicas, um palito de marfim totalmente amarelecido, com o qual o dono da casa decerto já escaranfuchara os dentes antes da invasão de Moscou pelos franceses.

(…) No canto do aposento amontoava-se tudo o que era mais grosseiro e indigno de ficar em cima das mesas. O que, exatamente, se encontrava naquele monte era difícil de definir, porque a poeira em cima dele era tanta, que as mãos de quem ousasse tocá-lo transformar-se-iam logo em luvas. O que se percebia melhor era um pedaço de pá quebrada e uma sola de bota velha, que apareciam mais à superfície. Jamais se poderia dizer que neste aposento pudesse morar um ser vivo, se a sua presença não fosse denunciada por uma carapuça velha e surrada que estava em cima da mesa.

(…) Nunca satisfeito com o que tinha, ele saía todos os dias para andar pelas ruas da sua aldeia, espiando embaixo das pontes e das passarelas, e tudo o que lhe caía nas mãos, fosse um sola velha, um trapo de mulher, um prego de ferro, um caco de barro, tudo ele carregava para a sua casa e punha naquele monte que Tchítchicov vira no canto do aposento. ‘Lá vai o pescado para a pesca!’, diziam os campônios quando o viam sair para as suas caçadas. E, com efeito, depois da sua passagem não era mais preciso varrer as ruas: se acontecia a um oficial em trânsito perder uma espora, num ápice essa espora ia parar no já conhecido monte; se um camponesa distraída esquecia seu balde junto do poço, ele carregava também o balde. (…) No seu quarto, apanhava do chão tudo o que via: um pedacinho de lacre, um papelucho, uma peninha, e colocava tudo na escrivaninha ou no beiral da janela.”

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