O elogio da clareza, da escrita clara, é comum em filosofia; também é usual a crítica àqueles que escrevem de tal forma que não podem ser compreendidos por um grande número. No “Prefácio à segunda edição” de A essência do cristianismo (edição da Vozes, p. 32 e 33), Feuerbach efetiva uma versão dessa convicção que guarda elementos peculiares:
[…] sempre tomei por critério da verdadeira forma literária e didática não o erudito, o filósofo das faculdades, abstrato e particular, mas sim o homem universal; o homem em geral – não este ou aquele filósofo – é que sempre foi para mim o critério da verdade; sempre considerei o mais alto virtuosismo do filósofo uma autonegação do filósofo, porque este nem como homem nem como escritor mostra o filósofo, i.e., é filósofo somente quanto à essência, mas não quanto à forma, somente um filósofo tranquilo, mas não genuíno e por isso tomei como uma lei em todas as minhas obras, assim também nesta, a maior clareza, simplicidade e precisão na medida em que o assunto permitir, de forma que todo indivíduo culto e especulativo possa entender, pelo menos quanto ao essencial.
Alcançar a boa “forma literária e didática” – escrever bem, guiar bem o leitor – depende, vê-se, de um ideal e de uma postura. O ideal é o “homem universal”, o “homem em geral”: é essa figura, senão de massa (pois o autor a restringe a “todo indivíduo culto e especulativo”), muito menos de nicho (pois não fala só às faculdades), que o filósofo tem em vista quando leva a pena ao papel; funciona ele talvez como o leitor modelo de Umberto Eco, é o interlocutor construído, talvez jamais real, a quem se escreve, que se precisa pressupor para escrever. Já a postura é uma de supressão do filósofo que se é: a filosofia se mantém na essência, no que gera o pensamento, podemos supor, mas deve ser canalizada de uma maneira adequada. Para apresentar adequadamente a filosofia, portanto, deve-se recusar a filosofia.
Chama a atenção, no modo como Feuerbach expõe essa ideia, os tons de exercício ético, mesmo de ascese, se poderia dizer em um sentido foucaultiano. O filósofo usa o termo “virtuosismo”, capacidade técnica excepcional, para denotar uma “autonegação” que é controle de forças em si, atingimento de uma “tranquilidade” (o filósofo intranquilo é o que se deixa levar por pulsões barrocas da filosofia?). Em suma, o filósofo pode ser virtuoso como um monge o é – se souber não ser filósofo.
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Contudo, essas tais “clareza e simplicidade” podem não ser tão claras e simples quanto alguém poderia querer. Logo após esse trecho, Feuerbach adverte:
Mas, não obstante isso, só pode o meu livro ser valorizado e entendido completamente pelo sábio (i.e., o sábio amigo da verdade, capaz de julgar, elevado acima dos escrúpulos e preceitos da plebe culta e inculta); porque, não obstante um produto inteiramente autônomo, é a o mesmo tempo uma consequência necessária da história. Muito frequentemente me refiro a este ou aquele fenômeno histórico, sem contudo mencioná-lo nem sequer pelo nome, apenas porque julguei desnecessário referências, que só seriam entendidas pelo erudito. […] Por isso, quem não conhecer as bases históricas e as fontes da minha obra, a este faltam os pontos de coerência dos meus pensamentos e argumentos; não seria de se admirar se muitas das minhas afirmações lhe parecerem frequentemente tiradas do ar, mesmo que baseando-se elas em solo tão firme.
Teria Feuerbach recaído, teria ele se deixado levar por aquelas pulsões que arrastam a filosofia a um solipsismo? Ou somente exigiria ele do seu leitor o mesmo que exige de si: igualmente uma certa ascese, a habilidade de recusar – no caso, “os escrúpulos e preceitos da plebe culta e inculta” – e de buscar ser algo mais que um sábio, um sábio com o qualifcativo amigo da verdade, cultivar filos pela sofia? Se a resposta for esta segunda, em suma, o leitor poderá compreender – se souber ser filósofo.