Será que posso atravessar a página deste Macbeth e encontrar seu leitor anterior do outro lado? Há vestígios de sua passagem: anotações à lápis nas bordas das folhas. O que é que buscava ou o que é que descobriu na obra de Shakespeare? Parece um sujeito aplicado. No prefácio, escrito por Manuel Bandeira, anota referências que deram origem ao livro e definições gerais:

-> Shakespeare modifica e mantém de Holinshed

Isto é, das Crônicas de Inglaterra, Escócia e Irlanda, de Raphael Holinshed. Também faz nota do Discurso de Feitiçaria, de Reginald Scott (e não da Demonologia, de Jaime I, citado logo depois). Mais importante, destaca que Macbeth é

-> A mais sinistra e sanguinária tragédia do autor -> Só 2 sobrevivem

Após essas considerações da procedência e da posição do livro em relação aos outros do bardo, chega a vez da visão da crítica:

-> Para Schlegel, Macbeth só fica atrás de Oréstia, de Ésquilo, na combinação entre o grandioso e o terrível

Por fim, ressalta ao fim do texto de Bandeira:

-> A poesia de Macbeth

Eis um primeiro padrão: este leitor oculto se fascina, por um lado, pela violência da peça; por outro, pelo lirismo dela. O que não nos diz muito, nem mesmo esse cuidado às portas do texto de fato – é Shakespeare, e a sombra dos grandes autores assusta como a placa de “cão bravo”. Talvez tenhamos uma pista mais concreta no fato de que, da lista de personagem, ele separa:

-> Aparições

Por que? Por que dentre o rei, sua mulher, seus filhos, seus generais, os nobres de sua corte, seus servidores, as bruxas – por que as aparições, essas entidades que surgem à Macbeth na iminência de sua queda e lhe concedem as três profecias que terminarão de arruiná-lo?

-> O Bem e o Mal,

– É tudo igual.

É o que as bruxas, em uníssono, dizem, logo no início. O que está em jogo aqui é aquela poética que nosso desconhecido se preparou para perceber no texto. Uma diluição de opostos, negação da moral, nem tanto um relativismo porque não afirma qualquer ponto de vista. As feiticeiras do Macbeth de Orson Welles são, seguindo a tradição medieval, malevolentes ferramentas do diabo – porém por esses versos o que vemos é uma profunda indiferença, seja pelo demoníaco, seja pelo angélico. Na anotação seguinte, o gosto pelo agressivo se sobrepõe:

-> Descose-o de um só golpe desde o umbigo

Até às queixadas, corta-lhe a cabeça

Uma cena que não estaria deslocada em Game of Thrones. Voltemos à poesia:

-> Antítese da boca de Macbeth

Um dia assim tão feio e tão bonito

Não vi jamais

Beleza e feiura, por sua vez, também se diluem. Essas “antíteses”, como chama este leitor, serão anotadas ao longo da obra. “Menos que Macbeth e maior do que ele”. “Não tão feliz e todavia muito mais feliz”. “Esta insinuação sobrenatural não pode ser má, não pode ser boa”. “E nada existe mais senão aquilo que não existe”. “Obra que não tem nome”. É, em suma, um interesse pelo indefinido. Isto o que lhe atrai nas aparições? Será coerente com o gosto pela violência?

-> Poético: “[…] se o dom tendes de ler / nas sementes do tempo e de dizerdes / qual há de germinar e qual não há de, / Falai-me então a mim […]

O indefinido aqui transparece pelo seu negativo: aquilo que pode atravessá-lo e encontrar uma resposta do outro lado. Uma busca pelo definido, então? Frente às profecias das bruxas, começo da ruína do protagonista, nosso amigo não deixa de ressaltar:

-> Previsões

A recepção desses prognósticos faz surgir outra palavra. Quando o companheiro de Macbeth se questiona se as bruxas estiverem de fato ali, se eles ouviram o que ouviram, e quando o próprio avalia em seu íntimo qual o valor das promessas que aquelas mulheres lhe fizeram, ele escreve:

-> Dúvida

Nosso percurso até aqui vai então tornando menos opaco esse retrato do leitor enquanto nota. Enquadram-se simplesmente no mesmo quadro de interpretação aquela inscrição “aparições” – que será repetida mais a frente, quando elas aparecerem de fato – e duas intervenções de Lady Macbeth: os termos “ajuda sobrenatural” registrados quando se enleva de ambição frente às possibilidades de ascensão social do marido; e a descrição dos guardas que havia dopado:

-> Natureza e morte altercam sobre / se estão vivos ou mortos.

Funciona igualmente a seguinte anotação, porém introduz ainda outro conceito:

-> Sobre nós pesam dúvidas e medos

Que possui uma representação alguns graus diferente em:

-> Oh, cheia de escorpiões trago a minh’alma!

Deveras, se estamos engolidos pelo indefinido, o sentimento que aflora é o medo, uma palavra que aparece reanotada mais duas vezes, uma delas contornada por um retângulo, e também é referida no apelo de Lady Macbeth ao autocontrole de seu marido:

-> Tudo são imagens / filhos do vosso medo

-> Ridículos disfarces / do medo verdadeiro

O que ele reconhecerá:

-> Minha estranha ilusão foi fruto de meu medo

Medo, dúvida, pretensão de saber e guiar o futuro: tudo isso se coaduna com a violência antes referida quando essas formas do indefinido atingem o corpo, violentam-no com a lembrança:

-> Vai e lava e mãos

-> Que mãos são estas? / Oh, elas horrorizam-me! me arrancam / os olhos!

-> Lavaria o grande oceano / De Netuno esta mão ensanguentada? Não! Esta minha mão é que faria vermelho o verde mar de polo a polo!

-> Fui tão longe neste rio de sangue, que, a vadeá-lo, (…)

O personagem “morria a cada dia de sua vida”, como ele também anota. A memória é o sangue, a mancha, a atmosfera. Ainda mais, essa memória acusativa é como uma definição brutal, que esmaga o indivíduo e conspurca até os imensos indefinidos, como o mar. É nesse sentido que podemos enxergar mais essa mensagem feita à lápis, referindo-se aos céus:

-> TURBADOS PELO HUMANO

Enfim, o que este qualquer descobriu da sua leitura de Macbeth é esse percurso do neutro, do possível, ao definitivo, ao inescapável. Ele anota de novo “mãos”, percebendo outra vez a marca do crime; ele anota “ambição”, indicando a causa. Outras palavras anotadas: “sepultura” – é a morte outro definitivo; “céus?” – adoro esse ponto de interrogação, como se o leitor admirasse que esse termo surgisse neste Shakespeare: que céus?; “cristandade” – que me leva à última hipótese. Esse sinal que define para sempre não precisa ser o de um caminho maligno. E é por isso que, na página derradeira:

-> Executar, com a graça de Deus

Se estamos corretos, é uma interpretação muito diversa da minha. O que me interessa é como Macbeth usurpa tamanho poder e se encaminha à autodestruição com o estímulo de uma ideia, uma sugestão minúscula que põe em movimento todas essas peças. O ato de bruxaria como o ponto de apoio ou a alavanca que transtornam o mundo. O que me interesse é como o poder se baseia, como percebe Hannah Arendt, em um consentimento geral, e Macbeth é menos rei, é rei nenhum, antes mesmo de perder a coroa, pois o povo se descolara dele (Throne of Blood, a versão de Akira Kurosawa, capta isso com destreza). Mas nos identificamos na admiração por esse trecho:

-> Significando nada

A conclusão do rei assassino prestes a cair quanto ao mundo e o som e a fúria que o constituem.

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