[texto publicado originalmente em Digestivo Cultural]
Espero que você tenha clicado neste texto apenas para fugir a uma tarefa. Que esteja, cá comigo, lendo frase após frase em uma rebelião muda contra a obrigação que te apoquenta. Pois, como o pedagogo Daniel Pennac escreve em Como um Romance — que é o tema deste artigo, você se aperceberá —, “líamos, e lemos, como quem se protege, como uma recusa, como uma oposição. Se isso nos dá ares de fugitivos, se a realidade perde as esperanças de nos atingir por trás do amuleto que é nossa leitura, somos fugitivos ocupados em nos construir, desertores nascendo outra vez”. Viemos ambos a estas letras para tomar um pouco de certo ar vital.
Ainda por aqui? Lembre-se de mudar de aba quando um chefe ou colega mais crica passar por perto. Fugir exige malemolências… (construir-se, também, embora outras). “Cada leitura é um ato de resistência”, continua Pennac, “de resistências a quê? A todas as contigências”. Isto, seja quais elas forem: sociais, profissionais, psicológicas, afetivas, climáticas, familiares, domésticas, gregárias, patológicas, pecuniárias, ideológicas, culturais ou umbilicais (às quais poderíamos adir as do transporte público…). “E, acima de tudo, lemos contra a morte.”
Derrubemos os Imperativos!
“Ai, que prazer, não cumprir um dever, ter um livro pra ler…“; — se parássemos por aqui, Pessoa concordaria com Pennac. Será que este autor, que ressalta os direitos do leitor de pular páginas, de não terminar um livro, de ler uma frase aqui e outra ali — será que concordaria com o direito ao interpretar contorcido? Fazer ranger escritores, como Foucault queria quanto aos filósofos.
Mas respeitemos Pessoa: “Ter um livro pra ler, e não o fazer. Ler é maçada. Estudar é nada. Sol doira sem literatura”. De todo modo, Pennac não criticaria o poeta português: no topo de todos os direitos do leitor está o direito de não ler. Essa defesa apaixonada da anarquia da leitura, das diversas formas de se relacionar com o que lemos, tudo faz parte da batalha central do autor de Como um Romance, que é contra o dogma, a Obrigação de Ler.
Lembremos lá de cima: lemos porque fugimos… e se pode fugir para dentro de uma cela? (Sim, nós sabemos, mas deixemos um “não” como resposta por facilidade do argumento). Diz Pennac: “O verbo ler não suporta o imperativo”. Isto é: os “leia!”,”estude!”, “decore!”, “disserte!”, todos eles estão depostos de saída. Ler vem da vontade ampla tanto para largar mão de ler quanto para forçar-se a ler.
Evidência: você só pula a barricada de um subtítulo se quiser…
Onde se Encontram Autor e Leitor: a Liberdade
Essa questão toda do Pennac me lembra um trecho do Que é a Literatura?, de Sartre:
Uma vez que a criação só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo. (…) Assim, o escritor apela à liberdade do leitor para que este colabore na produção da sua obra. (…) O livro não serve à minha liberdade: ele a requisita. (…) Assim, o livro não é, como a ferramenta, um meio que vise a algum fim: ele se propõe como fim para a liberdade do leitor.
Um apelo, não uma ordem. A questão que resta é como decidimos responder a isso.
Mas “um país se faz com pessoas e livros”… não?
Parece que sim: a educação, a leitura, o saber humanista, a participação na esfera pública que pode derivar dos anteriores — todos esses são elementos úteis para o desenvolvimento de um país. Com esse desafio em mente, enchemos os nossos “incentivos à leitura” com os imperativos que estávamos (pelo menos eu) tão dispostos a deixar de lado agora há pouco.
Há quem ache diferente. Eis Carlos Alberto Gianotti, em “A Leitura como Obrigação”:
(…) acontece que esse povo está mesmo é preocupado com o seu dia a dia, com as aporrinhações do trabalho aborrecente, com a criação dos filhos, com as inesgotáveis contas a pagar. Diante duma vida dessas, poderia alguém pensar em leitura de livros? Só uma elite cultural leviana consegue acreditar que sim.
Para esse autor, é delírio de certa elite intelectual que se queira que o Brasil se torne “um país de leitores”. Não é coisa para todos, pelas condições da vida, ele diz; nunca foi.
À educação escolarizada compete formar criaturas aptas para bem viver, para bem discernir; mas não formar leitores, ou artistas, ou atletas. Assim como apenas uma minoria nutre o hábito da prática esportiva continuada, igualmente uma minoria, como diz Steiner, será de leitores de livros. Não se obriga ninguém a ler, como não se obriga ninguém a dormir.
Deixo contigo avaliar se Gianotti está acertado ou não. Pelo menos uma conclusão dá um passo maior que a perna: certamente não podemos obrigar a ler, mas podemos fazer outra coisa.
Compartilhar a Felicidade da Leitura
“É preciso ler, é preciso ler”, ecoa Pennac, apenas para se questionar: “E se, em vez de exigir a leitura, o professor decidisse de repente partilhar sua própria felicidade de ler?”. O autor é um pedagogo, por isso se dirige a seus correligionários; mas esse chamado interessa a todos os que gostaríamos que mais pessoas lesse, que a literatura chegasse a mais gente.
Eu estou dando conta de mostrar como gostei do livro de Pennac? É leve, bem humorado, escrito em capítulo curtos, fáceis de enfiar entre uma atividade e outra e que dão o prazer virar página após página com velocidade. Entre crônica, ensaio, autobiografia (?) e crítica literária. Uma obra em que um professor lê em voz alta e encanta os alunos. Em que se sugere pular todas as partes técnicas de Moby Dick se é isso o que nos afasta do incrível dessa história.
(Me lembro agora que tive uma experiência parecida com a que conta Pennac: uma professora levou uma caixa de quadrinhos e livros à escola e nos deixou escolher livremente.) Ah, leitor, já que ainda está por aqui, me diga você: como partilharia a sua felicidade de ler? Se quiser, faça um experimento e me indique um livro, lá nos comentários. Mas tem de me fazer querer ler…
O Saber-se Criador de Sentidos
Pennac entende que um dos acontecimentos cruciais a afastar as pessoas da leitura é esquecer o quanto podemos ser criadores com ela. Quando aprendemos a ler, extraímos de curvas, retas, traços no papel sons, juntamos esses rabiscos e extraímos blocos de sentido, acabamos, por exemplo, sabendo que algo tão unidimensional quanto a palavra “universo” pode comportar o universo. Ou, ainda, ouvindo histórias que nossos os pais, avós, professores contavam, caber no período em que uma narrativa é dita, interessar-se, dispersar-se, guardar, abandonar, substituir, criar. Há experiências originárias dessa liberdade de ler que precisariam ser recuperadas.
(Nosso já conhecido Gianotti, no mesmo artigo de acima, escreve: “Veja-se, por exemplo, que permanece não formulada, por consequência não respondida, a indagação: o que precisamente é ser leitor? Mas a intenção aqui não é a de delinear a resposta”. Aqui, porém, achamos uma.)
A partir desse leitor-criador é que Pennac pode propor a importância de que se leia em voz alta:
(…) se sua leitura é um ato de simpatia pelo auditório como pelo texto e seu autor, se consegue fazer entender a necessidade de escrever, acordando nossas mais obscuras necessidades de compreender, então os livros se abrem para ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluídos da leitura vai se precipitar atrás dele.
Sei que é verdade: vi como textos de Hilda Hilst ganharam vida quando gravamos declamações de alguns deles durante uma exposição dedicada à escritora: Susan Damasceno interpretando a obscena Senhora D; Donizeti Mazonas criando Osmo; além de Laerte, Iara Jamra, Marçal Aquino, Paulo Sacramento e Andrea del Fuego. Ou, mais, Nelson Rodrigues renascido na voz de Zé Celso, Geninha Sá da Rosa Borges, Antonio Cadengue e Marco Antônio Braz. A língua vivifica.
Inclusive a nós mesmos, como nota Décio de Almeira Prado no Comunicação Poética. O poeta e teórico nos sugere que nos gravemos lendo os poemas, assim podendo ouvi-los, sentir deles os ritmos, as cadências, os influxos impostos pelo nosso jeito.
O Direito de Calar
Será que posso terminar esta resenha por agora? Já exauri o objeto? É preciso exaurir o objeto!
Vamos deixar essa coisa de ficar exaustos para outra hora: acho que já está bom de falar da obra de Pennac. Uma ideia ou duas para, como Billy Pilgrim, soltar-se no tempo e escapar da reunião arrastada, da tarefa doméstica, da conversa burocrática, dos tédios de toda estirpe. Um dos dez direitos do leitor (não citei todos) é justamente esse: o de não ter de responder questionários e entregar relatórios do que lemos. “De tal forma que nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver”, escreve Pennac, “a ninguém é dado o poder para pedir contas dessa intimidade”. Aceitemos o beneplácito. Deixemos a resenha silenciar…
(Cá embaixo há um espaço de comentários — como em toda internet — exigindo uma reação, uma impressão, um sentimento, uma consideração. O que está pensando? O que está pensando? Diga, se quiser: o que estou pensando, por ora, fica só comigo.)