“O que é esse livro aí, antropologia, psicologia?”, diz o senhor que senta ao meu lado no ônibus; eu respondo: “Filosofia”. Ele: “Ah! Filosofia. Eu tenho mais de cem livros de filosofia. Sabe qual foi o maior filósofo? Não foi Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles, nem Diógenes” — e me mostra uma edição de “Ecce Homo”, do Nietzsche — “Esse é o maior filósofo. Né? Porque com esse não tem véu nenhum”. E tira algo da bolsa, “esse livro aqui, ele custa oitenta reais, mas eu achei na Sé, em um sebo, por dois reais” — trata-se de “O Instinto Geométrico”, de Horst Ochmann, aparentemente uma dissertação em torno de Kepler, com umas seiscentas páginas. “Sabe quem é o Kepler?” — o livro aparentemente propõe uma geometria presente não só no universo como em todos os aspectos da vida, uma cosmologia em sentido próprio, portanto — “Esse livro explica porque as mulheres têm nove meses de gestação, é porque são nove planetas” (não confio que de fato o livro o diga); “Esse livro aqui, se você quer saber de filosofia, psicologia, ele tem”. Então ele retorna à bolsa, retira de lá uma caderneta preta, repleta de anotações (uma ideia por folha), se atrapalha com os papeis. “Você me desculpa que eu sou atrapalhado, é que eu tenho PVC” — “PVC?” — “Porra de velhice do caralho! E, além do mais, tenho SPA: Síndrome do Pensamento Acelerado!”. Ele fala de Freud; ele fala de Lacan (“Muito mais trabalhado que o Freud”), me mostra uma anotação sobre Maud Manony, psicóloga autora de “O Saber do Não-Saber” (não encontrei no Google…). “Eu tenho mais de 1200 livros. Você pode passar na minha casa que eu te empresto algum, eu não ligo pra isso não, eu moro atrás do Precito (supermercado daqui), logo atrás do Itaú, na rua tal, número tal, pega meu celular (mas senhor, você é muito confiado, eu posso ser um assassinoestupradorladrãopsicótico, ô meu deus!)”. Ele está vendendo a casa dele, até pensou em fazer um sebo, mas não rolou, algum problema com o trabalho, ele vende próteses, e, você sabe, “tudo que começa com P não presta: prótese, puta, padre e polícia”. Prossegue a doutrina: “Deus (ou ele disse universo?) é macro e nós somos micro, o corpo é submetido à mente, mas a mente é submetida à alma, nós somos dualistas”.
Chega o ponto.
“Qual o nome do senhor?”; “Juraci! E o seu?”; “Prazer em conhecer”.
Fico contente que ele está sorrindo. Ele diz: “A gente se vê por ai”.