A carroça de nada pela estrada de tudo: sobre o “Hinário Ateu”, de Lucas Grosso

Crítica Cultural

[publicado como prefácio do livro, que está à venda no site da editora Urutau]

O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirma que uma das coisas que nos definem é sermos seres em situação: seja o que for a nossa liberdade, ela se efetiva inscrita nos limites de um campo de possibilidades formado pela sociedade, pela história, pelo corpo. O jogo entre a total ausência de determinações — “somos condenados a ser livres” — e todas as coisas que nos cabe avaliar, interpretar, recusar, admitir forma a experiência do sujeito. Creio que essa pode ser uma chave interessante para pensar os poemas deste Hinário Ateu, de Lucas Grosso.

Como ao próprio Lucas agrada fazer — quando ensaísta, o autor gosta de entreter problemáticas e a meio caminho deixar o leitor por sua conta e risco — vou explorar essa linha de leitura apenas para lhe devolver, sem fechar caso, o livro. Ande comigo por ora por esses cenários paulistanos, por esses pesadelos brasileiros; atentarei a três situações que circunscrevem a poética de Lucas e depois do fim você dirá se concorda consigo. São elas: a cidade, o imaginário, a política.

A cidade: espaço do trabalho, do estreitamento da vida, da submissão a rotinas e coações (veja, nesse sentido, “O homem simulacro” e “A máquina está ligada”, entre outras) — o poeta, ainda e talvez apesar de sua incompreensão livre, não consente a essa cidade-via-crúcis: opõe-se a ela com violência (“Nobody cares”) e cansaço (“Vista fechada”), ou, mais fino, descobre aí algo que, em surto de luz, implode a sua lógica (o belo “A pomba executiva”).

O imaginário: persistência das poéticas alheias, versos, personagens, cenas que lhe soterrariam sob a “angústia da influência”, mas são reelaborados em ato: as irrealidades criadas por outros escritores, por músicos e cineastas, penetram o real (“Você”, no qual, como em uma canção de Alex Turner, Lucas se vê struggling with the notion that it’s life, not film), funcionam de modo a matizar os seus sentidos (“Releituras”), atuam como interlocutores privilegiados (“Meditação da Galeria do Rock”). Há aqui, como acima, desalento (ferino em “A mesma roupa cor-de-sangue”), contudo, também livramentos, de surpresa fáceis e lúdicos (“Carmen”). Basta ser leve?

A política: as repulsas que os donos do poder geram (“Manhã de um feriado nacional”) e as lutas sociais que demandam do poeta que se posicione. Lucas não decepcionaria Sartre nesse quesito: realiza, muita vez, como que alinhado ao filósofo, poesia engajada, contrapondo-se ao racismo (“Questão para o Enem”), ao machismo (“A mulher re-des-construída”), à barbárie normalizada (“Fragmentos de uma bala perdida”). Lucas se distancia daqueles que não compartilham dessas pautas (a quase crônica “Cabeças falantes”) e admira quem se coloca nesse combate e é capaz de gerar transformação (“Patricia”). Em meio a isso, deseja, igualmente, sossego (“Hoje”).

Outras séries poderiam ser formadas. Essas que compus evidenciam para mim o quanto o autor escreve na medida em que se vivencia envolto em sistemas, símbolos, opressões; o quanto está em situação. E, no interior dessa circunscrição, reage, lança-se em projeto (eis Sartre outra vez), recua, descansa sob a sombra de si mesmo. Lucas anota “sou um homem doente”, mas no fundo poderia ter dito “sou um homem comum” — e essa é nossa tragédia e nossa glória.

Não estaria tudo evidente desde o título? Hinário Ateu — a expectância do hino religioso, de um lado; a falta de um fundamento transcendente, o indivíduo nada além de si mesmo, do outro. É possível somar essas parcelas? Penso que sim, assim: aí está uma busca por transcendência que não a localiza em algum além, sem embargo a mapeia na imanência destas ruas, deste copo de uísque, deste computador. Alcançaremos esse paraíso que já está aqui, um dia — e dançaremos até perceber que “só existia o agora” (“Sequência dos fátuos”), e nessa ocasião “as violetas serão a preocupação maior do mundo”. Até lá, escreveremos prefácios.

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