por Adelto Gonçalves
I
O jornalista Duanne Ribeiro (1987), mestre e doutorando em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP), surpreende a crítica e o público-leitor com o seu primeiro trabalho de ficção mais alentado, o romance As Esferas do Dragão (São Paulo, Editora Patuá, 2019), em que procura, a partir de experiências pessoais, especialmente ligadas à infância e adolescência, construir um texto que foge aos padrões tradicionais, pois permeado de referências à cultura pop e aos desenhos animados, especialmente o Dragon Ball, criado pelo desenhista japonês Akira Toriyama (1955), que, exibido no Brasil pelas redes SBT, Band e Globo, tornou-se um marco na programação infantojuvenil na década de 1990.
Se o romance de Duanne Ribeiro constitui uma releitura do desenho Dragon Ball, a produção do mangaká Toriyama, criador de mangás (quadrinhos japoneses), por sua vez, é inspirada em Jornada para o Oeste, um dos quatro clássicos da literatura chinesa, escrito no século XVI pelo romancista Wu Cheng’em (c.1500-c.1582), durante a dinastia Ming, que combina ação, humor e lições espirituais. Esse conto de aventuras ocorre no século VII e conta a história de um dos discípulos de Buda Sakyamuni que teria sido banido do paraíso celestial pelo crime de danificar a Lei do Buda e enviado ao mundo e forçado a passar dez vidas para expiar seus pecados.
Esta digressão torna-se necessária para se tentar explicar a gênese do romance de Duanne Ribeiro que tem como pano de fundo a morte de seu avô materno, Antônio de Oliveira, em 2009. Como explica o próprio autor, a partir desse acontecimento, ele saiu “à procura dos sete orbes mágicos para ressuscitar o avô”, construindo uma epopeia que recupera uma série de relações afetivas.
Assim, ao mesmo tempo em que procurou recuperar universos de familiares, amigos e conhecidos, Duanne Ribeiro tratou de encontrar explicações para a morte, provavelmente, a partir de seus estudos posteriores na área de Filosofia, que incluíam livros dos filósofos franceses Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995).
Com isso, criou um texto que o jornalista, ensaísta e escritor Marcelo Coelho, colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Folha de S.Paulo, definiu como um verdadeiro tour de force de escrita. “Duanne Ribeiro convoca o mundo fictício da sua infância para transfigurar as suas memórias reais, num romance ao mesmo tempo alucinatório e ancorado em dor verdadeira”, observa, em seu texto de apresentação da obra.
II
Em seu mergulho proustiano, Duanne antecipa a impressão que o leitor vai ter da trajetória do protagonista, ao reproduzir os primeiros sentimentos depois da morte do avô: Como não houvesse algo dentro de mim que pudesse reagir a isso, eu não senti nada. Foi tímida e canhestra a dor que tomou impulso e se adensou; primeiro, a dormência. Entristecer-se é também um atuar de acordo, para tal causa apresento tal efeito. Antônio de Oliveira morreu, e me faltava a formação para perder um pai (mesmo assim me culpo: não o amava bastante?). Na sala fechada do doutor, alguns minutos mais tarde, ele me forçava a compreender as burocracias do luto (…).
Daqui por diante, o autor, que prescinde de um alter ego, põe-se a redigir a sua autobiografia precoce, como se impulsionado pelo transe alucinatório que viria da infância e de sua fixação pelas aventuras dos protagonistas do desenho animado japonês: Onde as planícies, as aventuras? Tomei o telefone do gancho. Minha voz não se sentia capaz, mas é preciso. Eu digo: mãe – e hesito. Eu digo: mãe. E ela sabia. Antes que eu pudesse dizer, sabia. Eu a escutei chorar, meu braço trêmulo, falei; cumpri com o meu dever. Depois nessa cadeira qualquer, vendo quando chegaram ao hospital. Como num filme mudo, os filhos transmitiram a mensagem à mãe, e eu assisti. (…) Minha dor, no entanto, não queria ser dividida. Mais adiante naquela noite, eu satisfiz outra vez o necessário. Madrugada, andando de carro, eu e meu tio até tivemos uma troca de futilidades. Como tudo se dopa. Na cama de metal de um necrotério a carne fria e dura para que a vestíssemos com suas roupas de gala definitivas. Eu queria sentir esse gesto como uma carícia.
A transcrição é longa, mas por aqui, além do estilo límpido e direto do narrador, pode-se perceber que ele a todo momento faz uma narrativa autobiográfica, com suas reminiscências alimentando-se de várias fontes. Seja como for, a memória é o fio condutor da narrativa, ou seja, rememorar constitui uma forma de recuperar o tempo perdido e reviver a experiência da perda. Por isso, tal como começou, termina o seu calvário proustiano rememorando a morte do avô, um representante comercial de empresas de construção, de 73 anos, que, na verdade, atuara como seu pai. Meu avô morreu: nada depois desta frase; nada antes dela? Como se deixássemos o possível para trás: a substância seca.
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.