“Paulo é o símbolo do nosso teatro”, afirma o diretor de teatro e ator Elias Andreato. “Ele representa uma geração que se dedicou, que criou um espaço de grandiosidade no teatro, [que o entendeu de] forma ampla, como cultura, conhecimento, educação.” “A única coisa que eu temo”, explica o também diretor Felipe Hirsch, “é que novas gerações já não saibam quem foi Paulo Autran. Paulo tem que ser estudado, tem que ser lembrado.”
Essas declarações sugerem a relevância de Paulo Autran (1922-2007), ator e diretor teatral de quem hoje, 7 de setembro, comemoramos o centenário de nascimento dialogando com esses dois diretores, que, além de terem trabalhado com ele, foram seus amigos. As falas de Felipe e Elias compõem, abaixo, um perfil de Paulo em mosaico: ao longo das seções, nós descobrimos sua personalidade, sua maneira de trabalhar e seu legado às artes cênicas.
Felipe Hirsch dirigiu Paulo em sua derradeira peça, O avarento (2006), de Jean-Baptiste Molière, depois de mais de uma década de trocas com o ator – montagem na qual esteve, também como ator, Elias Andreato, que antes dessa experiência havia dirigido Paulo em duas ocasiões: nos espetáculos Visitando o Sr. Green, de Jeff Baron (2000), e Adivinhe quem vem para rezar, de Dib Carneiro Neto (2005). Ao longo dessas vivências, conviveram com um homem de uma “disponibilidade assustadora”, dotado de uma “curiosidade infantil”, o qual, ator, era como que dramaturgo, e tinha desejo e orgulho de “casa lotada”.
Formação do teatro brasileiro
Elias se referiu ao momento histórico que o homenageado representa diante da pergunta “Como você define Paulo Autran?”. “É muito pouco definir o Paulo”, avisa ele, dando a entender que é preciso visualizar, ao mesmo tempo, o ator e o contexto em que ele se inclui e modifica: “A geração do Paulo batalhou muito. Encenou grandes autores e pensadores, formou uma escola – daí surgiram o Teatro Oficina, o Teatro de Arena –, estabeleceu um ponto de partida através dos clássicos, enfim, através do grande conhecimento”, afirma. “O teatro surge com essa geração, que [desbravou o caminho] para chegar ao público de forma difícil, árdua.”
“Depois vem a televisão, que facilita isso”, nota Elias, “mas antes não [havia]. O Paulo dizia que ele pegava o Fusca dele, saía de São Paulo e ia até Brasília, passando em cada cidade, marcando a turnê na ida, na volta fazendo a peça. Um trabalho muito cansativo, mas muito significativo para o nosso ofício. Acho que o Paulo, na sua essência, é o teatro.”
O último espetáculo de Paulo
O caminho até O avarento começou em 1989, quando Paulo Autran tinha 65 anos e Felipe Hirsch, 17. “Quando o conheci, eu era muito novo”, conta esse último. “Obviamente já o seguia como ator, estava começando a fazer teatro. Tinha estreado uma peça aos 13 anos e estreava minha segunda.” À época, Paulo foi a Curitiba (PR), onde Felipe morava, para montar A vida de Galileu, de Bertold Brecht, com direção de Celso Nunes. “Fui com o grupo de teatro falar com ele, e ele nos recebeu. Paulo teve toda a paciência do mundo de ler aquele texto com aqueles jovens, conversar com eles sobre teatro – algo inesquecível.”
Depois disso, mantiveram contato. Lá por 2001, depois de Paulo ter gostado de uma peça de Felipe, Nostalgia, passaram a conversar sobre trabalhar juntos. “Eu mandava coisas para o Paulo e ele falava: ‘Mas quem vai querer ver isso, meu filho?’. Ele me mandava também, e eu – jovem, dono do mundo – achava que talvez não me interessasse tanto”, descreve o diretor. Após cinco anos, resolveram-se. “A gente tinha que realizar isso, e ele falou: ‘Vamos fazer um clássico. Vamos fazer Molière’. E eu falei: ‘Com Paulo? Por que não?’.”
Outro estímulo para que Paulo montasse O avarento esteve nos diálogos entre ele e Elias Andreato, que, tendo dirigido antes o ator em elencos pequenos, conta ter sugerido a ele “fazer peças com mais atores, com gente jovem, para a vida dele ficar mais alegre”. Paulo, tudo indica, acatou o conselho, e, segue Elias, “o processo foi prazeroso. Foi muito rico, ele estava feliz, sempre rodeado de atores e atrizes jovens, e fazendo um grande sucesso”.
Foi essa a primeira vez em que ambos atuaram lado a lado, mas nem parecia: “A gente já tinha muita intimidade, brincava em cena… A gente estabeleceu uma relação muito bonita, porque ali não era diretor e ator, ali não era ator com ator, eram dois amigos que adoravam fazer teatro e estavam nisso para se divertir – e eu, particularmente, estava ali para que ele tivesse um final lindo, feliz, grandioso. O meu papel era esse naquele momento”, relembra Elias.
Atenção ao teatro que nasce
A relação entre Elias Andreato e Paulo Autran também veio de longe e demonstra algo que já transparecera no relato de Felipe Hirsch: Paulo tinha uma abertura ao outro e se punha na posição de incentivador. Elias fala: “Fiz assistência de direção para a Vivien Buckup, no Para sempre [1997]. Estabeleci um contato muito próximo com o Paulo, e ele me convidou para dirigir Visitando o Sr. Green. Fiquei, claro, muito comovido. Foi, naquele momento, um grande presente na minha história teatral: o Paulo me deu credibilidade como diretor. E a nossa relação se estabeleceu a partir desse encontro”. Tornaram-se “amigos íntimos”.
A esse primeiro apoio seguiu-se outro, em O avarento, conforme relata Elias: “Meu encontro em cena como ator com o Paulo também foi muito significativo, porque ele falou das minhas qualidades como ator, me deu um acalanto, uns conselhos ou alguns elogios amorosos. Eu me senti acarinhado por ele, recebido inteiramente como ator, diretor, amigo. Então, foi muito bonito e fiquei muito grato a ele, porque no nosso ofício a gente batalha tanto, às vezes o reconhecimento não vem, às vezes vem, e o fato de aquele homem ter dito o que ele disse de mim a respeito do meu trabalho como ator significa muito até hoje, e isso eu guardo com carinho”.
Como era dirigir Paulo Autran?
“A minha relação com ele como diretor e ator foi um aprendizado”, conta também Elias Andreato. “Eu estava iniciando nesse caminho da direção, e ele, em nenhum momento, me questionou ou disse ‘Isso eu não faço’. Nada. Ele foi de uma disponibilidade assustadora, o que me deu um sentimento muito bonito de fazer parte de uma família. Ele me colocou em um lugar de igual, e isso foi lindo, foi muito generoso da parte dele.”
A mesma percepção é compartilhada por Felipe Hirsch: “Ele nunca falou para mim ‘Já sei como vou fazer isso’ – embora às vezes até soubesse, nunca deixava isso transparecer. Ele tinha uma bagagem, mas queria ser provocado. Ele conversava, se aprofundava, estava sempre muito interessado em todos os movimentos de criação que aconteciam no processo”.
Para Felipe, essa é uma das características que os maiores na arte têm. “O Paulo”, diz ele, “é como muitos desses atores ‘velhos’ com os quais eu aprendi quase tudo que sei de mais precioso: eles nunca me falaram ‘Olha, isso eu sei’, ‘Isso não me interessa’, ‘Isso eu já fiz’ – todos eles tinham uma curiosidade infantil, e isto é o que me aproximou deles: a maneira de se aproximar da paixão que tinham e que fazia deles, com toda a experiência de vida, os mesmos meninos e meninas que, lá atrás, escolheram fazer teatro ou ser artistas.”
O trabalho do texto pelo ator
Se Elias Andreato ressalta como Paulo compôs a geração que mudou o teatro brasileiro, Felipe Hirsch destaca como ele representa uma tradição da manufatura teatral: “Antes de tudo, o Paulo é como se fosse uma raiz clássica de como trabalhar um texto. Sempre que trabalho com um ator jovem, digo que o Paulo é a base de tudo – se existe um jeito de falar um texto, a nossa base deveria ser como o Paulo lia. A partir daí, você pode subverter. Ele mesmo fazia isso, mas sabia estabelecer um ponto de onde os vetores sairiam”.
Elias também comenta essa prática de Paulo, sublinhando como a sensibilidade do ator fazia a dramaturgia ganhar diferentes modulações: “No Adivinhe quem vem para rezar, ele teve [vendo o roteiro] uma sensação de comédia, depois viu que o texto não era tão engraçado, que era mais denso. Mas ele não queria seguir por esse caminho da emoção e foi tentando buscar o lado mais bem-humorado da peça”. Esse procedimento mostrou algo novo a Elias – “como um ator consegue, às vezes, não percorrer o caminho que o autor propõe; foi bonito de ver como ele transformava o que poderia ser mais dolorido em coisas mais leves”.
Do fechar das cortinas…
“O Paulo tinha uma empolgação, uma paixão infantil. Por mais irônico, cínico – no sentido filosófico – que ele pudesse ser, por mais sábio, ele tinha essa paixão ali dentro dele muito viva”, diz Felipe Hirsch. “Aliás, foi exatamente isso que o levou embora daqui. Ele morreu porque não conseguia mais exercer essa paixão fisicamente, isso é muito claro. Ele sempre foi muito forte. Quando não conseguiu mais entrar no palco, quando precisava de oxigênio para estar lá, quando precisava até, sei lá, pedir a um deus – em que não acreditava, ateu como era – por força… Quando não mais conseguiu fazer isso, nem com a ajuda de certas coisas, ele perdeu a vontade. ‘Perdi a graça de tudo’, ele falou para mim.”
… e do viver nos palcos
“Paulo adorava fazer teatro”, narra Elias Andreato. Durante uma viagem de Adivinhe quem vem para rezar, não quis nem ficar em hotel: “Disse: ‘Vou ficar lá no teatro’. A gente botava uma caminha de armar na coxia e ele ficava deitadinho lá – isso é muito tocante.” Depois das peças, ainda segundo Elias, como “não gostava de ficar em casa, ia jantar 11 e meia da noite, tomava uma caipirinha, fumava, comia picanha, não tinha problema algum”.
Sua arte, acrescenta Elias, vinha de modo natural: “Uma vez uma repórter perguntou como ele fazia para se concentrar, e ele: ‘Não faço nada, acordo assim’. Então, o Paulo acordava ator, ele acordava Paulo Autran, não fazia nenhum esforço para isso”. Talvez por isso não fosse tanto de ensaiar. “Diferentemente da Fernanda Montenegro”, conta Felipe Hirsch, “não era um ator que – pelo menos comigo, já no final da vida dele – ensaiava por longas horas. A Fernanda ensaia 11, 12 horas por dia. O Paulo, não; ele fazia até graça – quando passava de três horas, ele falava: ‘Hoje rendeu, hein?’. Enquanto estava ali, ele estava inteiro.”
E estava lá, inteiro, quando a peça terminava também, como ilustra Elias: “Se o teatro tinha 500 lugares e vendeu 499, ele perguntava por que não vendeu aquele um. A relação com o sucesso, com o público, era muito forte nele. A geração dele fez teatro para muita gente – claro, para poucos também, mas depois para muita gente. Era uma questão de orgulho, de honra, ter a casa lotada. Ele adorava falar: ‘O espetáculo é um sucesso!’”.