[texto publicado originalmente no site da Ocupação Dias Gomes]

“A tentativa é de fugir ao realismo”, comentou Dias Gomes em abril de 1976 sobre a sua novela Saramandaia, “ou seja, equilibrar realidade e absurdo. Ou transmitir a realidade através do absurdo do qual muito frequentemente ela se reveste, principalmente nos países latino-americanos, países como o nosso”. De fato, o fantástico se coloca na trama de Saramandaia: temos nela Aristóbulo, um lobisomem, e Dona Redonda, que explode. Mas esse teor fantasioso aparece em outras obras de Dias Gomes – por exemplo, em O bem-amado ­– e constitui uma marca do seu trabalho; por essa característica, aliás, seu estilo é comparado ao realismo mágico de nomes como Murilo Rubião e Gabriel García Márquez. Nesta entrevista, fala-se desse contexto mais amplo e inclui-se Dias nele.

Quem apresenta esse panorama é Alysson Siffert, mestre e doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – tendo redigido a tese O realismo do fantástico: teoria geral e obras exemplares –, também licenciando em letras pela Universidade Paulista (Unip). Alysson explica os diferentes tipos de literatura de fantasia e trata do desenvolvimento desse gênero no Brasil em relação à América Latina. Além disso, pondera o potencial político do realismo mágico e sua capacidade de desvelar o real.

De início, duas perguntas sobre distinções. Primeira: o que distingue o realismo fantástico da literatura fantástica? Façamos a mesma pergunta com uma imagem: se um dragão surgisse em García Márquez, como isso diferiria de Game of thrones?

A literatura fantástica, em termos mais gerais e intuitivos, é toda literatura na qual ocorrem situações fantásticas, isto é: histórias que retratam algum rompimento das leis físicas mais comuns. Sob esse sentido, a literatura fantástica seria um gênero mais amplo; e o chamado realismo fantástico, apenas um caso específico desse gênero. Em outras palavras, o realismo fantástico também seria literatura fantástica.

Não obstante, hoje em dia há, sim, uma separação mais ou menos acentuada entre essas duas noções, seja por uma estratégia mercadológica, seja por questões históricas e estilísticas – ou até por causa da qualidade e da seriedade de certos projetos artísticos em comparação com outros. A expressão literatura fantástica tem sido mais aplicada à literatura de fantasia, do tipo Game of thrones ou Senhor dos anéis, em que criaturas inventadas aparecem por mero estratagema de entretenimento e cuja preocupação é, antes de tudo, o apelo fácil a um público amplo (a princípio infantojuvenil), e não um sério cuidado com a originalidade artística ou com a profundidade filosófica ou sociológica. Não por acaso, nenhum autor desse tipo de literatura de fantasia jamais foi cotado ao Prêmio Nobel de Literatura – o que não é nenhum preconceito injustificado, mas, sim, uma inevitável valoração artística.

Já o que se convencionou chamar de realismo fantástico relaciona-se com uma tendência literária mais específica, iniciada em uma época posterior às obras naturalistas de finais do século XIX e inícios do século XX. Uma vez que os naturalistas se autoproclamavam realistas e defendiam a escola do Realismo, que se pautava pela descrição fiel das aparências visíveis, tudo o que destoava das normas programáticas desse Realismo-Naturalismo precisou ser caracterizado de outra forma, como o Modernismo. As vanguardas modernistas europeias, então, trouxeram noções novas, como a do Surrealismo (isto é, algo diferente do Realismo, mas sem abdicar totalmente da realidade), o que também foi seguido pelos modernistas da América Latina, com as devidas adaptações locais. Entre os continuadores dessa ruptura estética encontram-se escritores como Jorge Luis Borges e Murilo Rubião, que já nos anos 1940 estrearam obras que apresentavam histórias com descrições, situações ou personagens que pareciam tão reais quanto os do nosso mundo, mas que se desenvolviam naturalmente em meio a ocorrências “fantásticas” (como a imortalidade).

Textos com essa marca não são originais do Modernismo latino-americano, por terem aparecido antes na Europa, em autores como Kafka. No entanto, a América Latina iria constituir um quadro cultural especial, muito por causa de sua peculiaridade histórica. Ainda em meados do século XX, nosso continente apresentava uma condição socioeconômica periférica, mais ou menos rural, que unia na realidade cotidiana tempos remotos aos tempos mais recentes. Nossos países mantiveram, enraizado no povo, um inflado valor de verdade às superstições e às crenças religiosas, algo que as revoluções burguesas europeias já haviam abolido para as camadas mais cultas de lá [da Europa]. Como consequência, refletindo esse aspecto da nossa situação, surgiu na América Latina toda uma tendência literária que colocou em pé de igualdade as superstições populares e a realidade cotidiana. Aos olhos da visão científica racional, tratava-se de histórias ao mesmo tempo realistas e fantásticas, o que mais tarde daria origem ao epíteto de realismo fantástico, ou realismo mágico. Por causa da alta qualidade intelectual e da originalidade estética dessa literatura, bem como de sua capacidade de atrair cada vez mais leitores, configurou-se em torno dela um grande boom editorial, que em poucos anos tornou diversos autores mundialmente famosos, sobretudo da América hispânica. O nome mais conhecido desse movimento foi sem dúvida o de Gabriel García Márquez, especialmente por efeito do romance Cem anos de solidão, a um só tempo o maior best-seller dessa tendência e a obra mais aclamada da inteira literatura universal dos finais dos anos 1960. Mas vale lembrar que Gabriel García Márquez não esteve sozinho nisso, já que vários de seus contemporâneos, cultores de algum tipo de realismo fantástico, também receberam altíssimas aclamações – por exemplo, Miguel Ángel Asturias e Mario Vargas Llosa, que, assim como García Márquez, foram agraciados com o Nobel.

Seja como for, mais até que o Nobel, o que de fato importa em termos de ponderação de qualidade artística é, no fundo, a capacidade de o elemento fantástico revelar e criticar aspectos importantes da realidade social que, antes dessas obras fantásticas, passavam mais ou menos despercebidos, mesmo para pessoas cultas e inteligentes. Portanto, se um dragão aparecesse em Gabriel García Márquez, seria a fim de retratar um traço essencial da nossa realidade socioeconômica ou dos nossos costumes culturais – e justamente por isto é que não aparece nenhum dragão em Cem anos de solidão: não se trata de uma criatura importante para nós, não faz parte dos nossos mitos populares. Já em Game of thrones ou Senhor dos anéis, o dragão é mais possível, por representar as crendices da Idade Média europeia. Tais obras, porém, no essencial, não são capazes de revelar nada de muito novo (aos olhos de alguém já devidamente educado); apenas atualizam antigas aventuras medievais, com intenção mais mercadológica do que propriamente estética (em termos de seriedade artística).

Em suma, trata-se de propostas estéticas diferentes, com o chamado realismo fantástico pertencendo, via de regra, à mais alta literatura crítica ou de arte, e a dita literatura fantástica (no sentido de literatura de fantasia) sendo mais adequada para a indústria do entretenimento de massa, um ramo de pouca profundidade filosófica e parca originalidade estética, como já estudaram Adorno e muitos outros. Por tudo isso, enquanto o realismo fantástico costuma ter excelente recepção e reputação tanto entre a crítica acadêmica quanto entre o público leitor, a literatura de fantasia só pode causar impacto no público consumidor.

A segunda pergunta sobre distinção leva em conta que o realismo fantástico seria um gênero latino-americano. Sendo assim (é assim?), como se distingue aquele que é feito em outros países da América Latina do que foi produzido aqui no Brasil?

O termo realismo fantástico foi cunhado por um estudioso norte-americano que conhecia apenas a vertente dessa literatura escrita em espanhol, isto é, os autores do boom da América hispânica. Estes logo iriam se tornar mais canônicos e conhecidos do que qualquer autor brasileiro, até pela maior influência mundial do espanhol em comparação com o português. Mas, além de essa origem conceitual identificar o realismo fantástico apenas com os lados da América hispânica, não seria errado admitir que há uma particularidade no realismo fantástico desses nossos vizinhos, entre outros motivos por haver entre seus países uma realidade histórica mais comum, como a presença de avançados impérios indígenas (como os maias e os astecas) quando da chegada dos colonizadores espanhóis, a independência realizada via repúblicas e o esforço unificador de caudilhos populares, como Simón Bolívar.

O Brasil, portanto, não compartilha exatamente as mesmas raízes históricas em termos políticos e culturais; porém, no que há de essencial na macroeconomia, existem muitas similitudes entre nós e nossos vizinhos (como a colonização por uma potência ibérica e a preservação até hoje do subdesenvolvimento), e isso gerou condições socioculturais que deram base a um realismo fantástico não tão diferente daquele encontrado no aludido cânone hispano-americano. Com efeito, mesmo antes dos anos 1950, o Brasil já produzia obras que, se tivessem sido escritas em espanhol, poderiam facilmente ser consideradas pertencentes a esse realismo fantástico canônico, como Macunaíma e os contos de Murilo Rubião.

Assim, do mesmo modo que iremos encontrar acentuadas semelhanças, mas também importantes diferenças, entre a obra de cada autor específico do realismo fantástico hispano-americano, entre cada realista fantástico brasileiro e esses autores de língua espanhola também poderíamos encontrar diversas semelhanças e diferenças. Isso, no entanto, só poderia ser devidamente apontado caso a caso, com um trabalho mais minucioso de crítica comparativa entre obras individuais.

Então, em termos mais gerais, a maior diferença entre o realismo fantástico do Brasil e o do resto da América Latina é a maior fama canônica das obras escritas em espanhol, o que no fundo tem mais a ver com a penetração de mercado do que com a qualidade inerente das obras brasileiras em comparação com as hispano-americanas.

Sobre o realismo fantástico no Brasil, quais autores se destacam nesse contexto e como era o ambiente que os estimulou a operar com esse gênero? É curioso, por exemplo, que Murilo Rubião e Dias Gomes (para falar um pouco dele) tenham recorrido a isso e trabalhado mais ou menos no mesmo período (Roque Santeiro é de 1965, data de Os dragões e outros contos etc.).

A rigor, no Brasil, algum tipo de realismo fantástico começa a existir no Romantismo, em poemas indianistas de Gonçalves Dias, embora de modo esporádico. Já a construção mais estruturada dessa tendência (ao mesmo tempo realista e fantástica) se inicia aqui com Machado de Assis, a princípio em contos e depois com a revolucionária invenção do defunto autor Brás Cubas. No começo do século XX, alguns naturalistas voltaram ao fantástico romântico, mas somente os modernistas, sobretudo Mário de Andrade, continuaram a produzir obras fantásticas de essência realista. Porém, o que se convencionou mundialmente chamar de realismo fantástico, aquele inspirado nos autores do boom hispano-americano, estreou no Brasil apenas com Murilo Rubião, que já nos anos 1940 passou a escrever pequenos contos insólitos que lembravam a lógica do absurdo presente em Kafka, o que também é uma presença destacada nos escritores da América hispânica, como Jorge Luis Borges. Nesse sentido mais convencional de realismo fantástico, além de Murilo Rubião, teríamos nomes como J. J. Veiga, João Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Érico Veríssimo e Moacyr Scliar – isso para citar somente os principais, isto é, os que foram mais aclamados por premiações e pela crítica especializada, além de serem dotados de algum reconhecimento popular.

Dias Gomes poderia, de certa forma, ser incluído nessa lista, mas com a ponderação de que seus maiores feitos na linha do fantástico ocorreram por meio da dramaturgia de telenovela, o que implica uma contradição. Se por um lado a telenovela possibilita um reconhecimento mais imediato de público, pela centralidade da televisão na indústria do entretenimento de massas, por outro lado esse gênero de dramaturgia acaba redundando em uma menor aclamação da crítica acadêmica e das mais tradicionais premiações literárias (principalmente em relação aos demais autores citados ou aos congêneres da América hispânica).

De todo modo, o que estimulou tais escritores a refletir a realidade com o fantástico varia muito de autor para autor. Na maioria dos casos, é possível perceber a influência direta de grandes autores que se enveredaram pela literatura fantástica, como Cervantes, Goethe, Gogol, Kafka e Thomas Mann. Em outros casos, além dessa influência dos clássicos universais, há ao mesmo tempo a ressonância dos textos religiosos e da própria fé ou superstição, como ocorreu com João Guimarães Rosa. E também não podemos descartar, por causa do boom editorial hispano-americano, um senso de oportunidade mercadológica, já que, a partir de meados de 1950, as camadas cultas do mundo inteiro passaram a ler com voracidade o realismo fantástico produzido em nosso continente.

Não obstante, o ideal do ponto de vista artístico era que o escritor não escolhesse o fantástico por mero arbítrio subjetivo, mas, sim, por uma necessidade estética essencial: pelo fato de enxergar no fantástico o único meio de configurar uma obra de arte mais profunda e reveladora da realidade. Esse ideal também se pode observar em diversas obras de escritores brasileiros.

Em suma, os principais nomes do realismo fantástico no Brasil são vários, assim como é variado o que levou os escritores a produzir esse tipo de literatura.

Você destaca a relação entre realismo fantástico e política. Isso é algo que ocorre com Dias Gomes (para citá-lo outra vez), que foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tratou de temas sociais etc. García Márquez também abrange a política no seu trabalho. Gostaria que comentasse essa imbricação.

Nos países da América Latina, onde o subdesenvolvimento gera condições socioeconômicas frágeis, é quase inevitável uma vinculação da arte autêntica com as ideologias partidárias, dada a importância da conjuntura política para os destinos individuais da maioria dos cidadãos. Na vertente do realismo fantástico, essa vinculação também ocorre com frequência. Por vezes, o uso do fantástico deixa menos explícito o tema de fundo político; no entanto, outras vezes, quando o escritor é mais engajado, o elemento fantástico aparece justamente para ressaltar os problemas sociais do país – cuja interpretação, via de regra, depende de determinada visão ideológica (mais ou menos socialista, comunista, liberal etc.). Em outras palavras, o fantástico pode traduzir em formas mais plásticas e evidentes as estruturas que determinam a vida do povo, trazendo à tona todo o espectro de questões sociais, das mais óbvias às mais ocultas.

Por causa de tudo isso, não é nada raro que haja uma estreita ligação entre os artistas e escritores e os demais intelectuais e políticos que buscam retratar e interpretar a nação. Os partidos comunistas, em especial, durante muitas décadas do século XX foram em vários países um dos centros mais influentes de pensamento. Era com os camaradas de partido que os artistas e intelectuais se reuniam para investigar o passado e propor horizontes para os destinos de seus respectivos países. No Brasil não foi diferente, e qualquer tentativa de leitura sobre os rumos brasileiros, desde que realizada de forma intelectualmente séria e honesta, passava pela discussão das teses propostas pelo antigo PCB (o chamado “partidão”), seja para acatar, seja para discordar.

Além dessa premência intelectual dos partidos comunistas no século XX, era natural que um autor ou artista preocupado com o povo do seu país acabasse colocando para si mesmo, de modo sério, a questão do socialismo, ainda mais em um país perpassado por desigualdades tão brutais quanto o Brasil. E, após tentar entender algo das premissas socialistas, o artista ou o intelectual decidiriam se deveriam ou não se filiar a algum partido, sendo os partidos comunistas um destino natural, dada a sua luta secular contra as injustiças sociais.

Inevitavelmente, a literatura produzida por autores que decidiram se filiar acabaria de um jeito ou de outro sendo influenciada por essa filiação – ou ao menos pelas discussões em torno das principais teses marxistas ou das vertentes anarquistas, socialistas etc.

Como o caráter mágico, fantástico, desvela? Sei que a tese trata disso, mas, se puder nos dar um panorama… A questão pode também ser posta assim: o que o realismo fantástico alcança que o realismo ele mesmo não consegue?

Essa é uma questão complexa, o que, de fato, exige mais trabalhos minuciosos, como uma tese de doutorado, porque cada caso é um caso. Em suma, não existe fórmula simples para explicar por que o fantástico pode chegar mais longe do que um realismo autêntico. Afinal de contas, nem sempre o fantástico é realista, e muitos autores profundamente realistas jamais sentiram a necessidade de usar o fantástico (caso do Tolstói).

Como panorama geral, podemos dizer que o fantástico sério tem uma aptidão para revelar a realidade porque, na realidade capitalista, a essência é ocultada das aparências, e o fenômeno da alienação provoca, no cotidiano das pessoas, efeitos mais absurdos e fantásticos do que se uma mesa começasse a se mexer possuída por um espírito (para usar o exemplo que o próprio Marx apresenta em O capital, ao conceituar o que é o “fetichismo da mercadoria” – tirando a palavra fetiche de feitiço, aliás). Assim, para retratar certas situações, o fantástico se mostra bastante adequado e realista. No entanto, se é de fato mais apropriado e profundo do que um realismo de tipo normal, aí depende de cada obra específica.

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