Interiores | Documentarista de sutilezas: as gambiarras de Cao Guimarães

Crítica Cultural

Interiores é uma série feita para o Itaú Cultural com base em obras do acervo de arte dessa instituição. Texto originalmente publicado no site do IC.

“Gambiarra 01” (2005), de Cao Guimarães

Gambiarra parece uma palavra muito brasileira: fala da habilidade para lidar com o imprevisto e com o precário e indica uma criatividade pragmática – ambas qualidades que muitas vezes foram usadas para descrever o nosso caráter como povo. Você se lembra de alguma que o impressionou, já fez uma você mesmo? Um conserto de bate-pronto, uma utilidade inventada com materiais e ferramentas provisórios, não convencionais?

Existe algo de especial nessa prática, e pode ser isso o que chamou atenção do artista visual Cao Guimarães, que de 2001 a 2014 produziu a série fotográfica Gambiarras, um apanhado dessas soluções inusitadas. Na obra enfocada neste texto, Gambiarra 01, uma tábua de corte deixa de ser usada para bater carne ou fatiar legumes e serve para segurar uma janela. Cao, afirma a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, “registra os atos criativos que resgatam as pequenas crises cotidianas, e eles passam a existir como obras de arte”.

A série Gambiarras coleciona várias dessas pequenas crises resgatadas, feitas obras de arte. A alça do sutiã rompeu? Um clipe resolve o problema. Os óculos estão sem armação? Um fio elétrico colorido dá conta do serviço. A cerveja ficou quente? Colocar gelo não dá, porque vai ficar aguado. E então? Basta pôr um copo dentro de outro com gelo. No total, o artista colecionou 127 dessas situações em que o uso comum se desestabiliza e um novo surge.

Cao “tem interesse em revelar o que não é percebido ou valorizado”, descreve a Enciclopédia, “[ele] oferece outro sentido e novo lugar de permanência ao que é desprezado”. “Observador atento às realidades”, o artista é um “documentarista de sutilezas”, articulando questões como o desvio – falamos um pouco disso há pouco –, a memória – talvez possamos dizer toda a carga que significa um objeto – e o tempo – pois ele é quem defasa os instrumentos e abre a possibilidade de alterá-los. Você concorda com essas interpretações?

Atuante no cruzamento entre cinema e artes plásticas, Cao Guimarães exibe uma produção intensa desde o final dos anos 1980 e tem suas obras no Brasil e no exterior. No nosso canal do YouTube, você pode acessar vários conteúdos com a participação do artista: sua entrevista para o Jogo de Ideias, os vídeos da mostra Filmes e Vídeos de Artistas e oficina Ver É uma Fábula, ministrada por ele durante a exposição homônima dedicada ao seu trabalho.

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