O que acima de tudo me marca nas músicas são as letras. Os versos me traduzem para mim mesmo, me deixam no limiar da palavra, como diria talvez Bachelard. O estilo está um grau abaixo disso – se tenho preferências por certo uso de instrumental ou outro, se desgosto de algum gênero, essas distâncias podem ser abolidas por uma única frase que me atinja. Foi sem querer que eu pensei ser capaz de atravessar o céu em frases que soubessem tudo sobre mim, cantam – foi sem querer, continuo, intersubjetivo.
Embora hoje isso tudo não seja mesmo verdade, um dia foi. Partindo desse recorte – músicos cujas letras têm uma qualidade particular – selecionei quatro álbuns, fortes não só pelos versos, mas pela música e parentesco com outros discos tão bons quanto. Imagino que poderiam ser outros discos, poderiam ser outros artistas, de todo modo, eis uma lista de gente que ouvi vezes demais, de quem percorri a discografia. Adicionei os links para ouvir em streaming em quase tudo que citei. Pula o texto que é melhor, clica, ouve sem ler!
Leonard Cohen, Songs of Love and Hate
A frieza, o orgulho amargo de Avalanche são tais que sinto, sob o crescente do violino e um dedilhado tenso, que é o próprio demônio que fala: you who wish to conquer pain, you must learn, learn to serve me well. A tristeza calma, a resignação, uma saudade que mistura traição e perdão sincero, história de vidas que se fragmentam, em Famous Blue Raincoat. O desespero, o escárnio de Dress Rehearsal Rag: I’ve said to myself – where are you, golden prince, with your golden touch? As músicas de Leonard Cohen interpretam de forma vívida sentimentos, histórias e personagens; são romance, poesia e canção.
Dentre tantos excelentes letristas do folk, Cohen se destaca. O primeiro Bob Dylan é menos poético e mais criador de imagens políticas ou proféticas. Nick Drake está como que preso a seu próprio mundo subjetivo, aos limites dele. Joni Mitchell conta histórias, mas, pelo que conheço, só em uma delas teve o alcance das letras de Songs of Love and Hate. Cohen fala de ódio, como notamos; fala de saudade, nessa alegria nostálgica de Last Year’s Man ou de Joan of Arc; fala do do amor que nasce inesperado, em Love Calls You By Your Name; por fim, fala do tempo que torna mais e mais acre o gosto dos dias – da necessidade de deixá-lo para trás num ímpeto: let’s sing another song, boys, this one has grown old and bitter!
Racionais MCs, Nada Como um Dia Após o Outro (CD1 e CD2)
As letras do Racionais misturam crime, esperança, violência, abandono, euforia e fé em um discurso que se dirige só aos seus iguais – não a você, não a mim, que, se nunca fui rico, do mesmo jeito nunca fui pobre. O mais incomôdo aqui é que esses versos não ignoram os abismos que afastam a sociedade: são consequência deles. São manifesto da agressividade, são vivência da agressividade. E, principalmente: ninguém está pedindo ajuda, ou expondo problemas à consideração sociológica. Há uma situação e há sobrevivência. Contra-ataque.
O fascínio do crime em Eu Sou 157. A ambição de Um Por Amor, Dois Por Dinheiro, que é possivelmente a mesma que esmaga uma classe. A descrição de um contexto social que frustra o crescimento pessoal, em Negro Drama. Um grito que se diz que ultrapassará todo desafio, em Vida Loca – Parte 1. O estado de guerra, o isolamento doído de Jesus Chorou. Um desejo de paz – talvez o mesmo que há em No Surprises, do Radiohead – em Vida Loca – Parte 2.
Dance of Days, A Valsa das Águas Vivas
Nenê Altro, vocalista do Dance of Days, é o melhor letrista do rock brasileiro de meados de 1990 para cá. Apesar de alguns lugares comuns e de momentos melodramáticos, compôs de uma forma desconhecida pela maioria das bandas do gênero. As letras se ramificam em intertexto (mito e literatura são relidos); desconstroem toda a suposta rebeldia do que se usa chamar movimento alternativo; descrevem experiências e sentimentos tão cotidianos de modo tão contundente que nos shows não era incomum a identificação imediata.
Acompanham o vocal duas linhas melódicas independentes – o baixo de um lado, guitarra solo de outro. A voz une os vocais berrados, rasgados, do screamo, e melodias para cantar (compare Quando o Dia Aquece Sementes Mortas e A Vitória ou Coisa que o Valha. Neste álbum, surge um tema que será preponderante: a vida comum, um esforço por viver o melhor possível – porque é só o que podemos fazer, não? Parece tão regular voltar pra jantar todos os dias, mesmo que eu sinta a mesa se equilibrar nos fios de alta tensão…
The Smiths, Hathful of Hollow
Alegria e tristeza se confundem nas músicas dos Smiths, tanto nas bases quanto nas letras. São talvez o par fundamental de uma dança contínua que inclui desejo e vergonha, solidão e multidão, esperança e arrependimento. Os letras de Morrissey partem dessa ambiguidade, descrevem com cinismo e minimalismo o que sente. It’s so easy to love, it’s easy to hate, it takes strenght to be gentle and kind. Somos tendência instável. Por isso uma necessidade de entrega, uma vontade de certeza e ao mesmo tempo de abandono de certeza.
O vocal se desgarra do instrumental, canta em sua própria melodia, tempo e intensidade. As guitarras trabalham acorde, dedilhado e riff, de um modo muito particular, pelo menos entre as bandas mais conhecidas dos 1980. A bateria imprime velocidade e força às músicas, se destaca em sua forma própria (repare por exemplo em These Things Take Time). São então três linhas de força, ao mesmo tempo. Mas não ouça só esse álbum. The Queen is Dead, Strangeways, here we come, Meat is Murder, todos são excelentes.