Trecho de O Caminho de Guermantes, de Marcel Proust, em que o narrador trata de uma ligação telefônica que faz a sua avó, de Donciéres a Paris. A experiência é naturalmente muito distante da nossa, ele precisa se deslocar ao posto telefônico, precisa contatar as telefonistas, que fazem efetivamente a conexão de um ponto a outro (e permanecem ouvindo a conversa), etc. Mesmo assim o que talvez em um primeiro momento fosse encarado com fascínio, já aí tem um toque de enfado — o que antes era impensável, hoje é até lento demais. Em se pensar do nosso ponto de vista, não só “muito demorado, muito incômodo”, como arcaico; e estamos em um mundo de tal maneira continuamente e intensamente conectado que a distância não é só “supressa” como em muitos sentidos inexistente. De maneira que a metáfora final, que permite entrever no contato feito pelo telefone o que nos resta depois da morte, não é sequer pensável. Entretanto, que outra metáfora existencial esse estado hiperconectado nos deixa inventar?
O telefone, naquela época, ainda não era de uso tão corrente como hoje. E, no entanto, o hábito leva tão pouco tempo para despojar de seu mistério as forças sagradas com que estamos em contato que, não tendo obtido imediatadamente a minha ligação, o único pensamento que tive foi que aquilo era muito demorado, muito incômodo, e quase tive a intenção de fazer uma queixa. Como nós todos agora, eu não achava suficientemente rápida nas suas bruscas mutações, a admirável magia pela qual bastam alguns instantes para que surja perto de nós, invisível mas presente, o ser a quem queríamos falar e que, permanecendo à sua mesa, na cidade onde mora (no caso de minha avó era Paris) sob um céu diferente do nosso, por um tempo que não é forçosamente o mesmo, no meio de circunstâncias e preocupações que ignoramos e que esse ser nos vai comunicar, se encontra de súbito transportado a centenas de léguas (ele e toda a ambiência em que permanece mergulhado) junto de nosso ouvido, no momento em que nosso capricho o ordenou. E somos como o personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz aparecer num clarão sobrenatural a sua avó ou a sua noiva, a folhear um livro, a chorar, a colher flores, bem perto do espectador e no entanto muito longe, no próprio lugar onde realmente se encontram. Para que esse milagre se realize, só temos de aproximar os lábios da prancheta mágica e chamar — algumas vezes um pouco longamente, admito-o — as Virgens Vigilantes cuja voz ouvimos cada dia sem jamais lhes conhecer o rosto, e que são nossos Anjos da Guarda nas trevas vertiginosas a que vigiam ciumentamente as portas; as Todo-Poderosas por cuja intercessão os ausentes surgem a nosso lado, sem que seja permitido vê-los: as Danaides do invisível que sem cessar esvaziam, enchem, se transmitem as urnas do sons; as irônicas Fúrias que, no momento em que murmuramos uma confidência a uma amiga, na esperança de que ninguém nos escuta, gritam-nos cruelmente: “Estou ouvindo”; as servas sempre irritadas do Mistério, as impertinentes sacerdotisas do Invisível, as Senhoritas do Telefone!
E, logo que o nosso chamado retiniu, na noite cheia de aparições para a qual só os nossos ouvidos se inclinam, um ruído leve — um ruído abstrato — o da nossa distância supressa — e a voz do ser querido se dirige a nós.
É ele, é a sua voz que nos fala, que ali está. Mas como essa voz se acha longe! Quantas vezes não pude escutar senão com angústia, como se ante essa impossibilidade de ver, antes de longas horas de viagem, aquela cuja voz estava tão perto de meu ouvido, eu melhor sentisse o que há de decepcionante na aparência da mais doce aproximação, e a que distância podemos estar das pessoas amadas no momento em que parece que bastaria estendermos a mão para retê-las. Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas antecipação também de uma separação eterna! Muita vez, escutando assim, sem ver aquela que me falava de tão longe, me pareceu que aquela voz chamada das profundezas de onde não se sobe, e conheci a ansiedade que me havia de angustiar um dia, quando uma voz voltasse assim (sozinha e não mais presa a um corpo que nunca mais veria) a murmurar a meu ouvido palavras que eu desejaria beijar de passagem sobre lábios para sempre em pó.