Hoje mesmo lembrei do Eduardo, porque toquei uma música que fizemos juntos, ele a base, eu a melodia, ambos a letra, alternando versos meus e dele, trechos dispersos compilados na verdade. Chama-se “Canções Mortas” (e esse adjetivo ressoa pesado porque eu sei a história que de fato estou contando) e começa assim:
troféus empoeirados
não pode mais ver:
válido tentar ou válido esquecer?
Esse era meu. Fala das datas de validade das alegrias. Isso é menos cantado que berrado. É uma música grunge/punk. Abre com um riff em si, mi e fá, seguido do mesmo em bordão. Daí vem um verso do Eduardo:
duendes mudos como famílias destruídas
Hermético, não? Isso vinha de uma dinâmica que um professor nosso propôs em aula. Nós estudamos juntos no ensino médio inteiro, o primeiro ano na mesma sala. A dinâmica tinha uma série de personagens a que devíamos atribuir ações. Depois o professor nos disse o que cada um representava. Eduardo disse que o duende estava mudo. O duende era a família.
o Sol continua a nascer
por não conseguir nada melhor pra fazer
Era meu o niilismo, reforçando o anterior com a ideia de que a vida é uma roda solta (“a carroça de tudo pela estrada de nada”; eu já havia lido “Tabacaria” então?). Lembro que antes de um ensaio da banda acabamos eu e Eduardo por reencenar esse verso. Ele me perguntou, qual seria, então, o sentido de viver? (Um tema que, naturalmente, só pode ser respondido por adolescentes). Eu não podia recuar: eu disse: não há; inventamos e seguimos a invenção. Vez ou outra me arrependo de ter dito isso: às vezes a mentira proporciona mais oxigênio.
poucas chaves para muitas portas
pessoas cruas, frias e mortas
olhos vermelhos, melancólicos
felicidade é alto nível de teor alcoólico
Algumas estrofes parecem contínuas, parece que falam do mesmo. Mas eu vi melancolia nas mesmas pessoas que Eduardo viu frieza e morbidez? Me identificava com a imagem em que há tanto a ter e teremos tão pouco, porém que portas ele e só ele tentou abrir, que chaves tinha e quais não? Esta é uma história sobre a última porta, todos temos a chave dela.
não adianta viver sem propósito
nem tentar ser um apóstolo
Lembro que tínhamos sim muitos propósitos, vindo de bicicleta de Santos a São Vicente, eu no cano, ele se esquivando dos ônibus, depois de termos passado um tempo compondo na casa da minha mãe à época. Tínhamos é claro a vontade da música, Eduardo sempre compôs com muita naturalidade, achava efeitos ótimos com recursos muito simples; era a contraparte do meu outro guitarrista, com mais técnica e também mais ambição formal. Mas lembro principalmente de uma madrugada em que, na avenida da praia, conversamos sobre como os últimos tempos tinham sido ricos, tanta coisa acontecendo que “era difícil absorver” (acho que ele disse isso…). Lembro que ele afirmou que ao ter emprego reservaria parte do salário para doar, o que me impressionou muito.
no final só há um muro
e você se esborracha:
não há túnel que leve pra fora
O final desse último verso é gritado, repetido, três vezes. Por acaso, ao longo de shows e ensaios, tornou-se “me leve pra fora”, o que eu mantive, mesmo que nunca tivesse feito esse pedido de ser levado de lugar algum. Não falo eu na letra toda com certo desprezo? Que me aterra em mim, que me devolve a mim; de mim eu não passo. Mas o Eduardo sempre escreve com um desalento. Então a música atingiu uma verdade tardia. Me leve pra fora,
a morte já não mais me apavora
levaram quem eu mais amava
Versos completamente sinceros, Eduardo tinha perdido o seu maior esteio, a sua mãe morrera, ele morava com avó (era isso? Eu devia lembrar…), ele tentou se matar cortando os pulsos nalgum momento depois. Aqui a nossa separação é abrupta, ele confessa, eu finjo:
toda dor que eu sentia
foi amenizada
por uma dose de morfina
Nunca nem vi morfina; mas era um tema típico do grunge. Eduardo levou o verso à realidade. Primeiro com a maconha, várias vezes ao dia, bem mais do que toda a galera, depois com a cocaína, depois com o crack. Disso não saiu mais, passou a viver na rua, se transformou em uma dessas pessoas pelas quais você sente uma pena burocrática ou só ignora. Hoje me disseram que por comer algo do lixo sofreu uma infecção e, assim, meu irmão morreu.
***
A última vez que tocamos “Canções Mortas” (o nome, aliás, é esse porque compilamos várias letras que não chegaram a ser), Eduardo não ficou na guitarra, sentou à bateria. Estava tão bêbado e/ou fumado (mais ou menos no padrão da turma) que tocou uma linha só do começo ao fim, pá-tu pá-tu pá-tu sem virada nem nada, eu o vejo contando isso e rindo. Ainda temos a gravação desse dia. É a minha preferida dessa música.
***
he’s turned to dust now
one of the chosen few
Eduardo e eu rimamos por muito tempo, e então não mais: é assim. Rimávamos por exemplo por gostar de Sonic Youth.
between the matress
and a column of hazy faces
I remember every word you said
quite a clear picture:
every word you said
Lembro que dessa música, “NYC Ghosts and Flowers”, ele disse: tem uma nota aqui que só acontece uma vez. Nunca a encontrei…
can you push back the hours?
I hear your voice, I speak your name
among New York city ghosts and flowers
will we meet? to run again?
through New York city ghosts and flowers
Sim, uma nota que só aconteceu uma vez. Eu a encontrei.

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