Publicado originalmente na revista Úrsula
O Google não previu a frase com que vou abrir esta entrevista (fiz o teste seguindo conselho do entrevistado): entre a necessidade permanente de saber surpreender-se e o encontro com as “singularidades”, “sempre surpreendentes”, que são as pessoas, as oficinas literárias orientadas por Marcelino Freire não prometem sucesso – nem mesmo incentivam essa busca. Completando, em 2024, 20 anos nessa prática, o escritor e agitador cultural, autor de Nossos Ossos (2013) e Contos Negreiros (2005), entre outros, procura mais tirar a pessoa do lugar – se ela quiser ficar lá, que fique, “oficina não é quartel” –, ele quer despi-la do sistema literário, soltar seus cachorros, convidá-la a descer uma ribanceira. Nesta troca por e-mail, feita em dezembro de 2023, Marcelino conta como começou a ministrar oficinas, comenta os impactos disso na sua obra e no seu percurso na literatura e compartilha algumas das dicas e técnicas que transmite nesses encontros.
Como e por que você começou com as oficinas literárias? Muita vez, esse é um modo de o escritor se sustentar com atividades ligadas à escrita, já que a venda dos livros em geral não é bastante. Esse também é o seu caso? Foi efetivo? Como te ajudou?
Comecei a coordenar oficina de literatura por causa da antologia que organizei, a Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, publicada pela Ateliê Editorial em 2004. Convidaram-me para fazer uma oficina sobre micronarrativas. Daí resolvei falar sobre concisão, enxugar palavras, a pessoa “dizer logo o que quer e ir embora”. De fato, as oficinas ajudam a pagar a comida do gato (meu namorado). Já são quase vinte anos nessa atividade. A oficina me ajuda idem a escrever. Faço oficina para conhecer parceiros e parceiras de mesa de bar. A conta do bar eu pago, sim, com o dinheiro das oficinas. E olha que eu bebo, viu?
Quais foram as maiores surpresas nesses 20 anos de oficinas? Imagino que você deve ter entrado em contato com uma miríade de estilos e intenções literárias, até bem diversas das suas. Como foi esse encontro com essa pluralidade de literaturas?
Surpresas a toda hora. Costumo dizer que a oficina é feita por “pessoas”. E pessoas são sempre surpreendentes. Trazem com elas repertórios, geografias, casulos, quintais, obsessões específicas. É uma troca de estímulos e estilos. Eu também preciso me surpreender a todo tempo, Não ligo no automático. Sempre estou inventando práticas diferentes, provocações outras. Sempre invento mentiras novas para contar. Pluralidade? Muitas singularidades. Quando a gente afasta o “sistema literário” da pessoa, o que mais aparece é voz própria, o arranco próprio, luz própria… Ilumina todo mundo.
No mesmo sentido, quais as maiores dificuldades? Talvez o bloqueio criativo, mesmo nas oficinas, ou uma falta de visão crítica sobre a própria literatura por parte dos oficineiros?
A grande dificuldade é fazer algumas pessoas escreverem. Ou lerem. Tem gente que vem para a oficina querendo publicar mas não querendo escrever. Tem gente que quer escrever mas não quer ler. Logo no primeiro dia cada participante, via sorteio, recebe um padrinho ou madrinha para irem lá pesquisar sobre aquele escritor, aquela atriz, aquela pintora, dançarina… Não falo só de escritores(as), falo de artistas vários(as) que lutaram muito pelo seu ofício, não cansaram de teimar para colocar sua vida artística em movimento. Tudo isso faço para que a pessoa saia do lugar… tem gente que senta a bunda no sofá de couro e fica lá, com a bunda estacionada. Enfim… Não adulo, não insisto. Oficina não é quartel. Se eu não fiz aquela pessoa se mexer, paciência… uma hora ela recebe um solavanco de uma outra pessoa e “acorda para Jesus” de vez. Salve e salve, Xangô Meu Pai.
A sua própria obra literária sofreu impacto do trabalho com oficinas? Isto é, seu texto foi desafiado ou instigado por esse constante ensino do exercício de criação? De que forma acha que a sua literatura se relaciona com esse trabalho?
Vale ressaltar que fiz oficina com um dos pioneiros de oficinas no país, o mestre Raimundo Carrero. Eu fiz parte da primeira turma dele lá no Recife. Eu tinha uns 20 anos. Carrero me ensinou a ler. Daí meu parágrafo já saiu remexido dali. E coordenando oficinas eu apreendo muito. Raciocinar sobre o trabalho do outro, da outra, é raciocinar sobre o meu próprio trabalho. Eu também desbloqueio junto, avanço junto. Descemos todos e todas uma mesma ribanceira. É apoio e compreensão mútua o tempo inteiro.
Mantemos uma série na revista chamada “Literatura se ensina?“. Como você responde a essa pergunta? É possível fazer de alguém escritor ou a pessoa precisa “nascer escritor”? Até que ponto uma oficina literária pode ir e até que ponto é por conta do escriba?
Eu creio que saem mais leitores(as) da minha oficina do que escritores(as). Não gosto muito dessa ideia de “ensino”. É mais “desensino”. É mais deseducação do que educação. Jean Genet me deseducou, Kafka me deseducou. Eu desaprendi tudo com a literatura que li. Eu perdi o dinheiro que eu não tinha com a literatura. É desinvestimento. Tem gente que vem na minha oficina com o desejo de fazer “sucesso”. Eu já digo que veio no lugar errado. Vamos escrever primeiro. Soltar os cachorros do peito. Mercado literário para mim é só o Mercado São José lá do Recife. Vai no Mercado São José escutar as vozes que estão vendendo coentro, que se esguelam para vender seriguela. Escrever é viver. A vida é a melhor mestra. Sabe tudo e não sabe nada. “Deixa a vida me levar”. Zeca Pagodinho na veia…
Pode compartilhar alguma ou algumas das atividades que você propõe nas oficinas? Algo que o escritor aspirante possa desenvolver para melhorar sua escrita e sua criatividade.
Coloca a tua frase no Google. Se o Google escrever antes a frase, troque a frase que ela está ruim. O Google tem nos ajudado a escrever. Ele localiza o lugar-comum. E localiza seus parceiros e parceiras. Coloca lá “escritoras travestis no Equador”. O Google localizará. Entre em contato com essas escritoras, troque ideias, faça pontes. Um outro exercício: faça também listas. Escreva dez itens que seu personagem carrega dentro da mochila. Você já pensou na mochila do seu personagem? Quantas coisas têm lá dentro? Outra dica: leia muito. Mas leia também arquitetura, botânica, mecânica, jardinagem. Vá ao cinema pornô. Há palavras que estão lá esperando por você. Aliás, responda rápido: qual a palavra que só você tem? É com essa palavra que você vai começar a escrever… Saravá, amém!
Indique alguns autores que participaram das suas oficinas e que hoje estão com uma carreira mais consolidada (seja lá o que isso for) na literatura.
A palavra “consolidada” parece algo “fossilizado”, né? Vamos sacudir o esqueleto, sempre. Posso dizer de algumas amigas que fiz nesse tempo de trocas. São hoje minhas parceiras de ofício, algumas inéditas até: Carol Rodrigues [leia um depoimento dela sobre seu primeiro livro, no qual ela cita as oficinas de Marcelino], Aline Bei, Calila das Mercês, Luiza Romão, Tenca Silva, Andreas Mendes, Gisele Mirabai, Sheyla Smanioto, Mariana Saloma Carrara, Andressa Marques… E os homens, hein? Esqueci de propósito.
