Isabel Maria, um bebê de menos de dois anos, abate o escritor ex-colombiano e naturalizado mexicano Fernando Vallejo em pleno vôo, asas negras giram em torno do eixo desfalecidas e ele caí, se desfazendo no monte de pó de notícias soturnas de que se criou. Sério, e isto porque uma leitura é o que se lê e o momento em que se lê. Ocorreu quando Vallejo sobrevoava Medellín, cidade da Colômbia; enquanto eu lia A Virgem dos Sicários e a criança brincava e estas situações se misturavam como óleo e água. O escritor se esforça para descrever um cenário de absoluta desesperança, faz do mundo e de seu país natal a terra de ninguém que nunca teve nem terá dono. Sua história amarga compila notícias de assassinatos e do tráfico, piadas sobre políticos e ataques verbais ao Papa, ao cristianismo e a muita, muita coisa. Repetidamente. Como um martelo.
O tema de Vallejo por excelência é a Colômbia. Um país que critica em todos os aspectos, que odeia com todo fervor – mas do qual diz não poder se desligar. É o remoer de seu rancor a base dos seus livros.
A Virgem dos Sicários conta a história de um gramático que volta a morar em Medellín depois de tantos anos. Acaba se relacionando com um jovem sicário – apelido para assassinos contratados – chamado Alexis. O namoro dos dois e o caminho que vão fazendo pela cidade, deixando muitos mortos para trás impunemente, conhecendo todas as igrejas, fugindo da morte e dando vazão aos comentários de Vallejo sobre quase tudo é o núcleo do enredo. O escritor pode, como esse texto vai tentar mostrar, ter atrativos por outros aspectos seus, mas, geralmente, as pessoas se prendem nos tais comentários. Que vão do polêmico fácil ao ataque virulento. Tipo: “Às terças-feiras chegava uma multidão tumultuosa vinda de todos os bairros e cantos, rumo aos pés da Virgem, para rogar, para pedir, pedir, pedir, que é o que melhor sabem fazer os pobres além de parir”.
“Três milhões de colombianos não cabem em toda a vastidão dos infernos. É preciso deixar um espaço prudente entre dois deles para que não se matem. Mas olhem os ajuntamentos! Um milhão e meio nas comunas [favelas colombianas], encarapitados como as cabras, reproduzindo-se como ratos”. O jornal literário Rascunho resumiu tudo do escritor em “Egocêntrico e sem talento”. Egocêntrico? Talvez. As únicas idéias que considera são as suas, de fato, mas a preocupação que tem com seu país – já que o ódio se manifesta nesta obsessão tão próxima do amor – é indicativo do contrário. Se nada mais houvesse para si além dele próprio, que importaria se a Colômbia se afundasse na merda? Nada. Sem talento? Muito discutível. A prosa de Vallejo é pra ler de um gole só e sentir como um único tapa no rosto.
O Rascunho exige ritmo e pede elaboração maior das frases, porém Vallejo é um escritor da catarse, é relator de uma espécie de transe em que teria se colocado graças às más notícias repetidas estampadas nos jornais e nas ruas. É repetitivo nas críticas, como quem não escapa e como quem não pensa; é contraditório como quem foge. Defende a língua e a tradição em algumas partes, nega toda a história humana em outras; define o deus como um produtor de várias infâmias e visita todas as igrejas de Medellín, e se diz ateu e descrente, mas reza à Virgem menina. Este livro de Vallejo interessa pelo registro da psique devastada de um dos moradores de Medellín. Pense cá comigo: é um ideário que poderá surgir um dia no Rio de Janeiro, com seus traficantes de bazuca guardada e poder de Estado nas vielas (“e por onde urinam ninguém passa”, diz Vallejo”).
Desta forma é que penso: qual foi o impacto que recebeu esse homem para gerar essas idéias? Vallejo pode ser pensado como um produto da mídia. Compilador das más notícias, da chacota da democracia e da politiquês fácil da crítica, se torna um alienado violento que vocifera e vocifera. Algumas das notícias que ele cita no livro são, de fato, verdadeiras; é como se eu dissesse que o Brasil é um lugar em que meninas são jogadas de janelas por seus pais e torturadas em quartinhos para “aprenderem”, em que nenhum rico fica preso, em que pedimos permissão aos traficantes para fazermos obras e em que o presidente é um bêbado analfabeto. Absolutamente seletivo, compondo uma verdade negra, ignorando tudo o mais. Vallejo é um abutre. Eis que entra Isabel Maria.
Porque um livro é o que se lê e o momento em que se lê. A menina interrompe a leitura e simplesmente não posso me manter absorvido na virulência, enquanto Vallejo segue se esforçando para me convencer que a Colômbia e o mundo são o inferno. É o ponto de vista dele que torna tudo tão sem perspectivas, e é por estar preso neste ponto de vista que sua literatura é tão pobre e tão substituível como denúncia (embora como ficção se firme pelo envolvimento que cria, como eu disse) por qualquer documentário. Outro Fernando, um português, ao que parece afirmou que no mundo o melhor são as crianças. Por saber disso, não pôde ser só angústia sendo Álvaro de Campos; teve de ser também Caeiro, que podia ver a beleza simples. E isso vale tanto para o Mainardi e pros Malvados (menos), leitor. Sabemos da limitação que têm; podemos ver além.