[texto publicado originalmente no Digestivo Cultural]
“Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança, em breve, vai acontecer.” Com maior frequência não nos posicionamos do lado de quem fala nessa letra de Belchior? O frescor que podemos sentir no verso vem de que, por um apelo à profecia, à imaginação, nos subtraímos ao realismo, ao pragmatismo, ao a vida como ela é inscritos nesse interlocutor, no “amigo” a quem nos dirigimos. Ele não sente, mas nós sentimos; ele não vê, mas nós vemos; temos consciência da lei: o novo sempre vem, e é certos disso que nos lançamos sem certezas ao futuro.
Me surpreendi ontem, porém, quando ouvi esse verso e não pude seguir seu entusiasmo — não pude sentir, ver, saber que uma nova mudança nos aguarda, apesar de tudo. Pois as pesquisas eleitorais descrevem um Brasil sufocado pela ideia de voltar, à esquerda e à direita circulam ideais de passado que devemos reativar. Pois os debates à presidência oferecem intensidades diferentes do mesmo. Pois seja qual for o resultado do pleito, no futuro do país podemos prever só o rearranjo das forças atuais, sob a permanência dos que têm a influência perene do controle da infraestrutura e do dinheiro.
Mudanças, ainda assim mudanças, alguém poderia me dizer — repare no adjetivo nova. Não se trata aqui de trocar as cores das peças no tabuleiro ou de puxar cartas do bolso, o fundamental é mais a irrupção de outra regra, a formulação de outro jogo. É mudança se a única questão é em qual governo Henrique Meirelles será ministro? Se os avanços sociais que houverem serão só o que a acomodação de interesses permitir que sejam? Se à pergunta “qual o Brasil que queremos?” só conseguimos responder, de uma ponta a outra do país, que não queremos ser roubados, só isso.
Me tornei aquele amigo a quem a música fala? Talvez sempre o tenha sido. Não sei quanto a quem conheceu essa música, “Velha Roupa Colorida”, quando ela foi lançada, mas é só filtrada pela retrospectiva que posso ouvi-la — é sabendo que, sim, a nova mudança aconteceu. Alucinação, seu álbum, é de 1976 — viriam a redemocratização, a constituição de 1988, a chegada ao poder de um partido que, independente da sua posteridade, é mais fruto da mobilização popular e menos dos debates internos às camarilhas. O profeta estava correto. Estaria o viço do verso em que eu sei que o novo veio?
Saber que o novo veio não é o mesmo que saber que o novo sempre vem. De um lado é a série de comprovações históricas, a qual exige no mais das vezes tremendos esforços para ordená-la de forma a que seja conveniente aos nossos desejos e que conduz a uma espécie de ressentimento satisfeito, um “eu não te disse?” aplicado a questões sobre as quais jamais temos o sereno juízo que advém quando tudo chegou a um termo. Do outro lado, trata-se de prever que haverá algo que não podemos prever. Que as possibilidades não são reproduções ou recombinações. São o impossível atual.
Você, eu, não sentimos, não vemos o impossível? A música adverte: é preciso curar-se para tal: “O que antes era novo, jovem, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer”. Como se rejuvenesce? Será como no poema de Manoel de Barros — “desaprender oito horas por dia ensina os princípios”? Talvez: por que, lembre-se, no lado oposto está o a vida como ela é, essa presunção e cinismo travestidos de sabedoria que amam o passado e que não veem… nós sabemos pelo contrário que “no presente, a mente, o corpo — é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
Uma roupa que não serve, como um sapato 36 para o nosso pé que é 37, o desconforto diagnostica que o estável pode ser insustentável. Experimentemos, então, inventar para além do nosso desagrado. Cabemos numa política reduzida a negociatas em Brasília? O mais amplo poderia estar no entrelaçamento político de toda a sociedade – sinto que é assim, veja: agora, nós, entrelaçados — politicamente, sim; minha ideia política abrindo caminho até as suas ideias políticas, esse contato transformando um campo político.
Cabemos no figurino apertado do voto como manifestação única da cidadania? Frutifico mais ao ponderar o nosso poder conjunto de nos construir todos os dias. De podermos levar, todos nós, pelas mãos, os presidentes. Ao se abrir por um momento a esses ideais, não nos fruímos mais jovens? (Mais ingênuos, diria o amigo de mau agouro.) Por quanto tempo nos deixamos permanecer nesse espaço arejado de invenção? É certamente um potencial nosso a criação; deixando-o de lado, somos — qual a metáfora, Belchior?
Somos aves rendidas. A transição dos pássaros nos mostra esse sentido. Belchior funde Edgar Allan Poe, Paul McCartney e plausivelmente Luiz Gonzaga para produzir um outro interlocutor, não mais um que lhe trave caminhos, mas um que lhe inspire renovação. Do corvo do poeta londrino, raven que se troca em never para dizer que a vida se esgota, “Velha Roupa Colorida” vai ao ”Black Bird” dos Beatles, a quem se conclama:
blackbird singing in the dead of night
take these broken wings
and learn to fly
all your life
you were only waiting
for this moment to ariseblackbird singing in the dead of night,
take these sunken eyes
and learn to see
all your life,
you were only waiting
for this moment to be free
Tem-se de reaprender a voar e a ver. O rejuvenescimento é um tipo de amadurecimento — para ser jovem outra vez é preciso atravessar uma velhice? Pelo signo do assum preto passaremos por outros oxímoros do tipo que podem nos convencer que sim. Ao pássaro inglês, soma-se a ave brasileira, cantada por Gonzaga:
tudo em volta é só beleza
Sol de abril e a mata em flor
mas assum preto, cego dos olhos
não vendo a luz, ai, canta de dortalvez por ignorância
ou maldade da pior
furaram os olhos do assum preto
pra ele assim, ai, cantar melhor
Ambos os pássaros não podem voar (um, aleijado; outro, na gaiola) e não podem ver (o primeiro tem os olhos adoentados; o segundo foi privado deles por crueldade). É a este último, contudo, que Belchior se dirige. Seria porque a graúna, como também se chama, canta marcada pela dor, assim como o poeta sabe que “sons, palavras são navalhas” e que “não pode cantar como convém”? Seria porque o destino do assum preto se mostra mais fechado e decidido, morte em vida mesmo — à qual o cantor se refere tantas vezes só para anunciar que renascerá em seguida? E ambos são brasileiros.
Canta o corvo em nós: o futuro nunca mais. Mas me cegar e me restringir a ser o amigo a quem o verso repreende só me trouxe a consciência de que até mesmo para enunciar utopias é preciso um trabalho. Um despojar-se da suspensão de descrença que mantém todos nós sintonizados à narrativa do mundo. O futuro nunca mais? Eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança, em breve, vai acontecer.