[texto publicado originalmente no Digestivo Cultural]
No início da peça Um Porto para Elizabeth Bishop, a poeta americana é retratada em sua chegada a Santos. Do navio, avista o horizonte, enxerga autocomiseração nos morros e insegurança nas palmeiras. São talvez os próprios sentimentos que se debatem nela própria o que vê. Ao mesmo tempo, é assim que compreende a nova terra, esta civilização cambaleante que seria o Brasil. Depois de longo percurso – da paixão por essa mesma terra e por uma mulher dessa terra, paixões feitas e desfeitas no tempo – a montagem a retrata mestre da arte de perder, de volta aos Estados Unidos, em um quarto de hotel, dançando ao som de um carnaval só rememorado.
De branco, quase no centro do palco, a personagem dança, delicadamente, só sentindo o ritmo, ombro e perna direita gingando, olhos fechados, enquanto a luz esmaece. Por alguns momentos, já sob aplausos, a atriz Regina Braga ainda acompanha a música – os lábios declinam sem som os versos, até que enfim se volta ao público. Há algo aqui que a mudou, por dentro; há algo de muito brasileiro que fez muito bem a ela. A peça delineia a personalidade de Bishop, descobre o país por seus olhos e, principalmente, parece por em destaque esse algo – parece responder a alguns versos da americana: é isso que este país tão longe ao sul tem oferecer? Mas esse algo é sequer real?
Um Porto para Elizabeth Bishop teve sua estreia há uma década. Por ocasião dos 500 anos do Descobrimento, Regina pediu à Marta Goés um texto para “falar do Brasil”: o resultado foi esse monólogo pela ótica estrangeira. Neste ano, no qual se comemora o centenário de nascimento de Bishop, o espetáculo reestreou no Teatro Eva Herz, em São Paulo, com direção de José Possi Neto. O enredo é biográfico: a poeta, em 1951, viaja para cá, com o intuito de passar alguns dias. Permanece, no entanto, por 15 anos. Redescobre a alegria em relacionamento com a arquiteta Lota de Macedo Soares; lida com a sua vontade de criar, seu terror da falta de aprovação, seu vício em álcool.
Regina interpreta uma Bishop frágil, desejosa de atenção, que vê o mundo com ironia ou fascínio, recortada por momentos de autoconfiança e lucidez. Não sei o quanto isso se aproxima da poeta ou o quanto se harmoniza com sua obra, mas essa é a impressão que se pode ter: menos de alguém a um tempo forte e débil e mais de alguém que sabe ou pressente que a força comporta fraqueza e vice-versa. De algum modo, as coisas se desfazem e o que sobra é o indivíduo, menos e mais do que era. Como se lê em “Uma Arte”:
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério. [leia completo]
É essa a mulher que se encanta pelo Brasil. Porém, por qual Brasil? O que ela vê é, na verdade, sem novidade, é a interpretação (não só) estrangeira típica. Que é o Brasil? A beleza natural, sensual. Que somos os brasileiros? Um povo de cordialidade única. Se, de um lado, desorganizados e indolentes, sem a eficiência propriamente americana, de outro possuímos um afeto livre, afeito mais à alegria do que a preocupações. Ela diz: “O Rio de Janeiro é um cenário para uma cidade maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa”. Bishop fala de um país anterior, de fato subdesenvolvido, mas a plateia ri com cumplicidade dos comentários da personagem, o que evidencia que esses conceitos estão em funcionamento hoje também.
A poeta aprecia a familiaridade imediata de gente que a trata por “minha senhora” e, em seguida, por “minha filha”. Descreve nossa obsessão por futebol: “Eles devem ter campos até dentro dos escritórios!” (essa imagem tem um equivalente no episódio de Os Simpsons no Brasil). Fala de política e construção: “Com tanta roubalheira, aqui não se pode distinguir entre direita e esquerda”; “Quero ver quanto tempo vai demorar para fazer esse parque com técnicos brasileiros“. Essa é, ou era, a visão não só dela, mas de todo os Estados Unidos, sobre nós – o que não é difícil de ver na produção hollywoodiana derivada da política da boa vizinhança. É curioso, entretanto, que haja aquela conivência da plateia, na medida em que a relação entre os dois países mudou, assim como a posição brasileira no mundo.
Por a Fantasia Abaixo
Essa nova relação inclui mesmo o gosto de revanche. Em “Um Leve Sabor” (da Folha impressa, disponível aqui), Janio de Freitas o expressa: “Foi com prepotência, com mal disfarçado gozo pela humilhação imposta, com a força do neocolonialismo em sua forma financeira, que os Estados Unidos e a Europa tripudiaram sobre nós, em nossos decênios de desarranjos econômicos e financeiros (…) Hoje, experimentam o sofrimento que impuseram em tão larga escala”. Ainda: “E isso, ao menos para mim, tem um sabor algo refrescante”. Enquanto os países desenvolvidos driblam a falência, o Brasil vira hype. Como afirmou Roger Cohen, no New York Times: “Oil discoveries, a commodities boom, sound economic management, political stability, the World Cup in 2014 and the Olympics in 2016 have combined to produce a Brazil fever“.
Gilberto Dimenstein dá voz à Nitin Nohria, professor de Harvard segundo o qual somos “um dos cinco países mais importantes para quem está preocupado em estudar os negócios”. Eliane Cantanhêde informa que, em um ano, pulamos “de 15º para 5º lugar no ranking de países que mais receberam investimentos diretos”, e destaca as manobras portuguesas para nos ter como compradores das suas empresas estatais (se se pensa que fomos colônia de Portugal, que absorveu seguidamente nossos recursos, a situação não é irônica?). Do momento em que Bishop desembarca em terra nacional até o presente, tudo se transformou; da primeira exibição de Um Porto…, também – as Torres Gêmeas ainda estavam de pé e a China não aparecia tão influente. A crença do público no cárater nacional descrito acima, no entanto, é a mesma. Por que?
Tenho duas hipóteses. A primeira é que nos apegamos ao lado negativo desse caráter que seria nacional. Veríamos as deficiências educacionais (por exemplo, na leitura), as más administrações, a política tacanha – e creríamos em uma pré-determinação a nos manter subdesenvolvidos, o jeitinho brasileiro como transcendental.
A segunda é que gostamos de nos acreditar esse povo cordial, de alegria frequente e afeto expansivo, formado pela diversidade. Nós nos identificaríamos, pela simpatia da imagem. Essa crença é problematizada em um momento do espetáculo em pauta. Com o suicídio da brasileira Lota de Macedo Soares, Bishop se questiona algo como: todo esse sentimento, esse clima, essa beleza no país – isso me ajudou tanto! Mas por que não você, Lota? É a pergunta que pode por a fantasia abaixo. Para nós, que nascemos neste carnaval de cordialidade, o que esse país tão longe ao sul tem a oferecer?