Andrés Bruzzone: “Ricoeur é o filósofo dos encontros, da convivência entre os diferentes”

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No último maio, a Rede Brasil-Ricoeur – associação de pesquisadores dedicados à obra do filósofo Paul Ricoeur (1913-2005) – completou um ano de existência. Tendo em vista esse primeiro marco, conversamos com o seu presidente, o jornalista e também filósofo Andrés Bruzzone, sobre a origem da rede, como têm sido as suas atividades, que panorama dos estudos sobre Ricoeur ela nos proporciona e quais suas perspectivas futuras. Bruzzone, que não se considera um especialista em Ricoeur – apesar, como nota, de frequentar os seus livros há mais de vinte anos; de ter sido um dos tradutores da biografia Paul Ricoeur: Os Sentidos de uma Vida, de François Dosse; e de ter dialogado com ele no mestrado e no doutorado –, também nos apresenta a filosofia do autor, sua diversidade interna (seu pensamento vai da “tradição clássica às filosofias da linguagem e da mente, da fenomenologia husserliana à hermenêutica e à psicanálise freudiana”), a apropriação de suas ideias por áreas distintas – como a teologia, o direito, a psicologia, a sociologia, a medicina – e o caráter engajado e encarnado do seu pensamento. Diante dessa amplitude, Andrés questiona: “O que pode contribuir um pensador como este para o momento que nossa sociedade atravessa, o que pode contribuir um pensador que faz, do autocuidado e do cuidado do outro, uma filosofia do homem?”.

Comente sua relação com Paul Ricoeur. O que te atrai nos seus métodos e no seu ideário? Por exemplo, na sua dissertação e na sua tese, ele é um nome importante. Fale sobre como ele aí aparece, sobre o seu diálogo com o autor.

Descobri Paul Ricoeur ainda na graduação, quase por acaso: estava na biblioteca da USP pesquisando sobre Freud e dei de cara com Da Interpretação – Ensaio sobre Freud. Me fascinou a escrita de Ricoeur naquilo que marca tanto ele: a busca constante, a paciente e trabalhosa escavação de conceitos, a elaboração dedicada que o filósofo expõe na argumentação. O texto mostra o Ricoeur que pensa, que avança paciente e laboriosamente, respeitando aqueles que o precederam e oferecendo aos que o acompanham materiais ricos para seguir pensando. São tantas as vias que ele enseja, aponta, indica! Naquela época eu lia Agostinho e me pareceu encontrar o que eu chamei um certo “ar de família” entre os autores, apesar da distância enorme no aspecto cronológico e consequentemente na história da filosofia. Mal sabia eu, então, que Ricoeur colocava Agostinho nos dois corpus de referências para seus campos de trabalho, o filosófico e o teológico. Encarei, no mestrado, uma leitura das Confissões usando ferramentas do arcabouço ricoeuriano como a identidade narrativa e os estudos sobre a memória. E funcionou! A leitura se tornou muito interessante ao destacar na grande obra de Agostinho o caráter de busca, de interrogação e de, chamemos, com cuidado, construção de si. Já no doutorado, com orientação do querido Franklin Leopoldo, resolvi me aventurar no campo da comunicação a partir de noções do universo ricoeuriano, resgatando alguns trabalhos onde o filósofo aproxima fenomenologia e filosofia analítica para desaguar em textos mais influenciados por Hannah Arendt e Levinas, especialmente O si-mesmo como outro. O pensamento sobre a comunicação, reificado demais, e vítima de um utilitarismo voltado para o consumismo capitalista, tem muito para beber nas fontes ricoeurianas.

Circunstâncias particulares fizeram com que Ricoeur fosse meu companheiro e meu guia em momentos e transições difíceis. Suas palavras, seu pensamento e sua atitude perante os fatos trágicos que marcaram sua vida de ponta a ponta, serviram-me como referência e suporte quando tudo o resto parecia desabar. Entendi então o quanto o pensamento de Ricoeur está encarnado na própria história, como ele enraíza seu pensar nas vivências pessoais, como indivíduo e como membro de uma sociedade da qual sempre fez questão de participar de maneira ativa.

Eu não me considero um especialista em Ricoeur. Antes, me coloco no lugar de um leitor avançado. Faz mais de 20 anos que leio Ricoeur, fiz mestrado e doutorado, traduzi alguns dos seus textos e a sua biografia, escrevi e publiquei e estou publicando livros sobre Ricoeur ou alicerçados no seu pensamento, mas estou muito longe do que pode ser o que se chama especialista. Há pessoas no Brasil e na América Latina que conhecem a obra do filósofo muito melhor do que eu. Mas não vejo como um problema não ser especialista e me pergunto: até onde se pode ser verdadeiramente especialista quando se trata de Ricoeur? Não seremos nós apenas pontos de onde parte uma certa perspectiva de leitura, uma das múltiplas portas abertas para entrar no pensamento do filósofo? Creio que o pensamento de Ricoeur se enriquece quando abordado desde múltiplos olhares e numa espécie de diálogo contínuo com ele, com sua obra e com suas ideias. Não importa quão você o estude, sempre haverá novas perspectivas a serem exploradas, novas conexões a serem feitas. Isso que o próprio Ricoeur chama de “potenciais de sentido” que o pensador pode explorar nas obras, para além das interpretações consagradas. Ricoeur é cheio destes potenciais de sentido, que são fonte inesgotável para a reflexão, como vemos nas muitas apropriações de sua filosofia nos mais variados campos do pensamento.

Conte um pouco sobre o histórico da rede, sua criação a partir do grupo de leitura.

A rede chega numa conversa que começou bem antes e que irá continuar depois de nós, podemos dizer, parafraseando o filósofo. A origem é o grupo de leitura ricoeuriana, surgido da reunião de colegas de diferentes partes do Brasil que a princípio se encontravam eventualmente em congressos sobre pensamento de Ricoeur. O grupo foi concebido por Fernando Nascimento e Walter Salles, numa conversa após o Congresso Latinoamericano que ocorreu na PUC-Rio, em novembro de 2011. Eles passaram a convidar colegas pesquisadores para encontros virtuais, a cada mês, a fim de debater um artigo de Ricoeur ou alguma contribuição autoral sobre Ricoeur. O grupo foi se ampliando e, em vários destes encontros mensais, surgia a ideia de organizar institucionalmente a pesquisa sobre Ricoeur no Brasil. Esta ideia foi ganhando corpo e no dia 6 de maio de 2022, numa reunião organizada por colegas pesquisadoras e pesquisadores brasileiros que, em sua maioria, já se encontravam regularmente desde 2017, foi proposta a criação de uma rede voltada aos estudos ricoeurianos. A ideia foi muito bem recebida, e após uma votação unânime, formou-se a Rede Brasil-Ricoeur. Nosso estatuto diz que nossos objetivos são patrocinar, promover e realizar pesquisas, estudos, congressos, simpósios, palestras, entre outros, sempre com o intuito de incentivar e disseminar o pensamento de Ricoeur.

Então há um ato fundacional em maio de 2022, mas a origem da rede é anterior, na criação do grupo de leitura on-line focado na obra de Paul Ricoeur. O grupo de leitura surgiu da necessidade de responder a uma demanda por mais interação entre pesquisadores. Um dado importante dá razão à ideia de reunir as pesquisas sobre Ricoeur no Brasil: Fernando Nascimento, num projeto com o Fonds Ricoeur e a Society for Ricoeur Studies, em 2017, fez um levantamento bibliográfico dos escritos sobre Ricoeur e constatou que o volume de publicações e de pesquisadores que estudam Ricoeur no Brasil, era superior ao da França e dos Estados Unidos.

O grupo on-line de leitura, inaugurado em 2017, realiza reuniões mensais na última sexta-feira de cada mês. Ele se consolidou, com altas e baixas desde o seu nascimento, mas sob a condução da professora Cristina Viana, viveu uma forte expansão em número de participantes e em diversidade de pesquisas. Em 2021 ficou mais clara a demanda por parte de membros do grupo de documentar oficialmente as atividades das reuniões. Já havia algumas conversas no sentido de lhe dar um formato oficial, avançar na sua institucionalização; foi então que Weiny César tomou a iniciativa, e coordenou os passos práticos e as possíveis formas de concretizar esta ideia. Assim, em meados de 2021, formou-se uma comissão específica para a elaboração de um projeto do que seria a rede, composta pelo próprio Weiny, com Fernando Nascimento, Walter Salles, Cláudio Reichert, Roberto Lauxen, Ricardo Pereira e Manoel Coracy. Com o apoio de muitos membros do grupo e de uma série de pesquisadores ricoeurianos brasileiros convidados, realizou-se uma reunião virtual para a fundação da Rede Brasil-Ricoeur junto com a apresentação e escolha da diretoria.

Como a rede se efetiva, como foi o primeiro ano do grupo. Que atividades foram feitas, como a estrutura de uma rede modificou as ações realizadas?

O primeiro ano da rede foi consumido por duas grandes atividades. A primeira foi o estabelecimento burocrático da associação, desde a personalidade jurídica até a abertura de contas bancárias, registros oficiais, a criação de um site, de redes sociais e de um corpo de colaboradores mais ou menos permanentes. O segundo grande esforço foi a organização do nosso primeiro encontro, um Congresso Internacional que será realizado em agosto de 2023, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade de Campinas (Unicamp). De alguma maneira, podemos dizer que será com esse encontro que a rede nascerá efetivamente, que o feito até aqui é um período gestacional. Fomos ambiciosos ao conceber esse encontro, que já mostra uma força e um potencial que parecem prometer um futuro rico para a rede. Contamos com um alto número de inscrições e a confirmação de conferencistas e participantes de vários países e continentes.

Optamos por centrar nossa temática no conceito de identidade e sua relação com a hermenêutica crítica de Ricoeur. A escolha se deu considerando a complexidade e diversidade da sociedade brasileira em suas manifestações culturais, valores morais e ideais políticos, e como as contradições sociais têm nos levado a uma profunda crise de identidade como nação. Acreditamos que a hermenêutica crítica ricoeuriana fornece uma perspectiva valiosa para esse problema, pois não é apenas metodológica, mas também ética, levando em conta a autocompreensão do sujeito.

O evento tem uma vocação multidisciplinar, buscando espaço para as diversas áreas de pensamento com as quais Ricoeur interagiu ao longo de sua vida. Estamos interessados em representar pesquisas realizadas não apenas no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, mas especialmente na América Latina e na África. Buscamos diversidade em todos os aspectos da organização do congresso e tentamos explorar a riqueza variada que a questão da identidade nos propõe. Conseguimos alcançar esses objetivos apenas parcialmente e eu sinto que ainda estamos em dívida com alguns aspectos constituintes da nossa identidade brasileira. Faltou-nos, isso está claro, trazer o pensamento original daqueles que habitavam a região antes da chegada dos europeus e também não conhecemos o pensamento africano, que de alguma maneira nos constitui.

Outros países da América Latina (e o Brasil ganharia muito se reconhecendo nesta pertença territorial muitas vezes esquecida) vêm trabalhando na tentativa de desenvolvimento de um pensamento próprio, não europeu ou não apenas ou principalmente europeu, e é uma grande interrogação se isso é possível ou se estamos condenados a ser uma espécie de colônia ou de posto avançado da metrópole. Nesse sentido acredito que olhar para África pode ser revelador, não somente porque na sua origem do Brasil é tão africano quanto é europeu, se não mais, mas também porque há um pensamento africano em construção e pode ser interessante entender como eles vêm fazendo, como eles relacionam a obra ricoeuriana com o pensamento originário e com a situação geográfica e histórica onde essa obra é recebida e trabalhada.

Nisso tudo fica bastante claro que reconhecemos que a obra de Ricoeur ultrapassa as fronteiras da academia e toca aspectos fundamentais do pensamento e ação política. O tema do congresso, seu perfil multidisciplinar e seu objetivo geral refletem muito do que a Rede Brasil Ricoeur e seus membros representam. Demonstram nossa crença no valor do coletivo e nosso compromisso em defender e preservar os valores democráticos, a justiça social e o respeito pelo indivíduo. Em um momento histórico repleto de tensões e desafios aparentemente insuperáveis, nós da Rede Brasil-Ricoeur confiamos no poder do diálogo e do debate, reconhecendo nossa responsabilidade perante a sociedade brasileira.

Creio que a rede, a partir dos pesquisadores que mobiliza, permite uma visualização do estado da pesquisa sobre Ricoeur no Brasil. Que panorama você pode dar dela? Há áreas ou temas frequentes?

No Brasil, a obra de Ricoeur possui uma expansão significativa tanto em termos geográficos quanto temáticos. Sabemos que existem estudos dedicados a Ricoeur em diversas áreas da filosofia e, dentro da filosofia, em diálogo com outras correntes filosóficas além da fenomenologia e da hermenêutica. Conhecemos também estudos que abordam Ricoeur no campo da psicologia, muitas vezes em relação com Freud, mas não apenas. Ele também é estudado sob perspectivas bastante heterodoxas como numa aproximação ao universo junguiano, por exemplo.

A proximidade de Ricoeur com os estudos literários e da linguagem é forte e ficou evidente na escolha do IEL como sede para a realização do nosso primeiro congresso. Ricoeur e a política oferecem um vasto campo de estudo que tem no Brasil vários expoentes. No campo dos estudos históricos, encontramos também uma produção muito fértil, assim como na pedagogia e em vários campos das artes.

A filosofia de Ricoeur também se faz presente em áreas como direito, sociologia e até medicina, onde seus estudos são utilizados como fundamento e marco de análise. Há uma ampla produção também no direito e na sociologia.

Isso tudo, claro, sem mencionar os estudos religiosos, que tem um campo vastíssimo também. Por uma questão de perspectiva, eu conheço menos o Ricoeur teólogo, mas é necessário ter sempre em mente que há uma obra importante num terreno exterior à filosofia, que é a teologia, onde essa obra teve uma recepção muito rica desde o início do ricoeurianismo no Brasil.

No entanto, essa enumeração ainda não consegue abarcar a riqueza e a diversidade da aplicação e da recepção do pensamento de Ricoeur no Brasil. Por isso, um dos objetivos da nossa Rede é realizar um censo que nos permita mapear de maneira adequada toda a variedade da produção de pensamento no Brasil neste momento. Sem dúvida, isso nos coloca como um dos países mais férteis no campo do pensamento ricoeuriano. Pretendemos realizar esta investigação nos próximos meses para, então, apresentá-la no segundo aniversário da criação da nossa rede.

Falando nisso, quais as ações pretendidas para o próximo ano da rede?

Volto num ponto que é uma inquietação minha cada vez mais forte, que é a possibilidade de desenvolvermos um pensamento próprio, brasileiro, muito mais do que uma extensão do pensamento europeu. Eu não sei se isso é possível, mas acho interessante, talvez indispensável, avançar nas consequências dessa pergunta. Nós, pensadores da filosofia no Brasil e na América Latina: como podemos ou devemos construir um pensamento nas margens, na periferia da civilização europeia que habitamos? Estamos mais próximos de Machu Picchu, mas pensamos como Atenas. Somos mais os pensadores que dominam uma ou mais línguas europeias, inclusive latim e grego, do que os que têm familiaridade com as línguas indígenas do Brasil, que, recordemos, são mais de 270 oficialmente registradas. E vemos que como parte do movimento identitário que tomou conta de boa porção da cena política, começa a se fazer visível um pensamento de origem indígena: isso deveria nos convocar, creio, como elemento constituinte de nossa identidade.

Nesse sentido, realizamos em junho um encontro entre dois gigantes do pensamento brasileiro: o analista junguiano Roberto Gambini e a filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, que conversaram sobre a alma e a identidade brasileira. Roberto tem um trabalho riquíssimo a partir dos mitos indígenas e de um estudo das cartas de jesuítas naqueles primeiros anos dos europeus nestas terras. Esse encontro foi organizado e mediado pelo professor Weiny César, como parte de algumas atividades que chamamos de pré-congresso, que trarão também uma interessantíssima conferência do professor Manoel Coracy, em 4 de julho, sobre as primeiras leituras de Ricoeur em torno do político.

Fortalecer os laços institucionais com organizações da América Latina e da África é um dos nossos objetivos para a rede. Teremos no congresso de agosto próximo uma pequena, mas significativa amostra do pensamento de colegas desses dois continentes. Mas esta amostra deve ser completada com um panorama mais amplo do que está sendo produzido nesses dois continentes tão importantes para o Brasil. Insisto na ideia de que estamos mais próximos e sabemos mais sobre o que se pensa na Europa e nos Estados Unidos do que em nossas vizinhanças geográficas e históricas.

Em um momento de nossa história tão fortemente marcado pelas lutas identitárias, que interessante pode ser estudar a recepção africana. Há pessoas que estão buscando caminhos para uma filosofia autenticamente latino-americana que tenha Ricoeur como uma referência forte. A minha proposta é que uma das missões da rede deve ser estabelecer pontes com esses pesquisadores.

Queremos dar visibilidade a Ricoeur. Entendemos que sua contribuição ao debate público pode ser muito nutritiva para uma sociedade marcada por tentativas autoritárias mais ou menos bem sucedidas, por uma polarização em que o outro deve ser aniquilado, onde os espaços de verdade são todos saturados por uma das partes do debate, ou seja, não há debate.

Acreditamos ser importante o resgate dessa dimensão política de Ricoeur, que nunca se privou de participar no debate público das questões controversas com as quais se deparou ao longo de sua extensa vida. Ricoeur viveu de maneira direta e imediata as duas grandes guerras, sofreu a violência política dos anos 1960 na própria pele, acompanhou a ascensão e a queda de regimes totalitários e pensou em muitos dos grandes temas que hoje nos ocupam – por exemplo, a imigração e as guerras.

Aos que não conhecem a obra de Paul Ricoeur, como você apresentaria esta obra?

Ricoeur é precisamente o filósofo do diálogo, dos encontros, da convivência entre os diferentes. Isto não somente, nem principalmente, em termos do conteúdo de suas ideias, mas na própria forma como essas ideias surgem, se desenvolvem, saem ao mundo e são transformadas na convivência com outras ideias, com outros pensamentos, com outras tradições. Ricoeur é o filósofo da tradução, o filósofo da hospitalidade, o filósofo que busca o lugar para o outro e se põe no lugar do outro. O que pode contribuir um pensador como este para o momento que nossa sociedade atravessa, o que pode contribuir um pensador que faz da acolhida do outro a base da própria identidade e do autocuidado, e, do cuidado do outro, uma filosofia do homem?

Nossa visão é inspirada na vida e obra de Ricoeur, que formulou uma filosofia que se encarna de duas formas: na sua história pessoal, que é o terreno onde surgem as questões – às vezes obsessões – que o acompanharão durante toda a sua trajetória filosófica; e na história do mundo, em que uma identidade coletiva é formada, algo que nunca foi indiferente ao filósofo e onde ele optou por ter uma voz ativa.

Ricoeur foi um verdadeiro cidadão do século XX, vivenciando (literalmente) os grandes movimentos da história europeia, desde a Primeira Guerra Mundial, que o deixou órfão ainda criança, até a queda do Muro de Berlim. Ele foi prisioneiro na Segunda Guerra Mundial e participou ativamente dos tumultuosos eventos na universidade em Maio de 1968. Seu pensamento foi influenciado por Hannah Arendt, Primo Levi e Jorge Semprun, e, junto com Jan Patocka, ele se interessou pela situação dos oprimidos em vários regimes totalitários, pelos imigrantes e pelas vítimas de várias formas de violência. No plano pessoal, ele viveu tragédias desde a perda precoce de sua mãe, pai e irmã, passando pelo luto pela morte de um filho por suicídio e de sua companheira de vida, expressando suas perdas e dores em sua escrita. Ele fez uma filosofia sem absoluto, mas nunca renunciou à convicção. Sua experiência de vida foi a fonte de seu pensamento e, através do diálogo com uma variedade de vozes, ele buscou novos espaços de verdade, encarnando seu pensamento em sua própria história individual e no plural, com e para os outros.

Falar da filosofia encarnada de Ricoeur é reconhecer uma vocação: a de enraizar seu pensamento na experiência vivida como um indivíduo em uma sociedade da qual ele faz parte e que o molda. O pensamento não surge isolado de um mundo habitado por seres humanos que agem e sofrem: ação e pensamento caminham juntos e a filosofia se preocupa com o mundo em que é formulada. Vemos isso em suas investigações sobre o voluntário e o involuntário, sobre o mal e até mesmo no pensamento sobre a memória individual. Mas se quisermos ir ao extremo desse enraizamento no sujeito individual, podemos mencionar Vivo até a morte, onde fica explícito como a própria experiência do filósofo se transforma em pensamento.

Há também inúmeros exemplos de como o pensamento está enraizado na vida coletiva, na construção de identidades coletivas. Muitos desses exemplos ajudam a iluminar as possibilidades que o pensamento de Ricoeur nos oferece quando buscamos contribuir para o debate sobre questões urgentes, inadiáveis, que nosso continente e nossa época em geral enfrentam, e que são ainda mais dramáticas no Brasil atual. Falo, como mencionei anteriormente, sobre a questão da identidade, mais especificamente em relação à memória de uma nação e seus esquecimentos, à história e como ela é narrada, com quais recortes, com quais destaques, com quais omissões. 

Como entrar na obra de Ricoeur, como você nos convidaria a conhecê-la?

Sempre sinto uma dificuldade quando me pedem uma indicação de qual livro começar para ler Ricoeur. Em alguns casos, minha resposta direcionou-se para a biografia do filósofo, ou para a sua pequena autobiografia intelectual; em outros, para livros que reúnem alguns de seus artigos e que tratam de maneira sintética e bastante acessível alguns dos grandes temas. Em outros casos ainda, pude orientar para a leitura de textos que dialogam com uma tradição ou um saber específico, como a filosofia do direito, o pensamento psicanalítico ou o pensamento histórico. Há uma característica na obra de Ricoeur que a torna paradoxalmente mais difícil e mais acessível: o diálogo, visível, explícito, com um leque de autores e de correntes filosóficas das mais variadas. Mais difícil por não poder ser totalizada em uma única visão, e essa é a minha dificuldade com os especialistas. Por outro lado, mais acessível porque é possível adentrar o corpus de seu trabalho a partir da parte com a qual a filosofia dialoga e reflete.

Quem já trabalhou com o texto de Ricoeur sabe que uma leitura acadêmica e rigorosa de sua obra exige abordar e considerar um grande número e uma grande diversidade de filósofos e pensadores, de tradições e de escolas filosóficas. Poucas pessoas devem ter lido tanto quanto ele leu, e poucos filósofos citam e discutem com tanta variedade de pensamentos. Por isso, ter o texto de Ricoeur como objeto requer uma pesquisa e uma erudição que tornam o trabalho muitas vezes bastante árduo. Ser verdadeiramente especialista em Ricoeur exige ser especialista em muitos domínios que vão da tradição clássica às filosofias da linguagem e da mente, da fenomenologia husserliana à hermenêutica e à psicanálise freudiana. Essa é a exigência para quem de verdade quer ler em profundidade a obra ricoeuriana.

No entanto, ao mesmo tempo, existe a possibilidade de uma leitura mais superficial, sem que a superfície seja considerada um aspecto pobre da obra ou a superficialidade da leitura represente demérito. Pelo contrário, a superfície da obra de Ricoeur nos convida a navegar pelas águas do seu pensamento sem necessariamente mergulhar nas suas profundezas, e essa navegação é sempre muito rica e nos leva a lugares muitas vezes inesperados. Para continuar com a metáfora náutica, acredito que as correntes profundas do pensamento de Ricoeur fazem a superfície do seu texto se mover de maneiras muitas vezes imprevisíveis, mas sempre ricas, sempre levando-nos com vitalidade em direção a territórios que podemos explorar, onde podemos nos aventurar. Arquipélagos de autores específicos ou de corpus temáticos que esta cartografia nos permite descobrir desse extraordinário companheiro de navegação que é Ricoeur.

Por isso, o convite para quem não conhece a obra de Ricoeur é de adotar uma aproximação como flâneur, uma aproximação que permita pinçar conceitos ou linhas conceituais que, num segundo momento, possam ser novamente exploradas. Nesse sentido é que eu acho que as biografias ou as coletâneas de artigos são excelentes pontos de entrada. Voltando à imagem do navegar a superfície, talvez essa deva ser a aproximação até que se encontre essa ilha, deserta ou habitada, onde botar a âncora e quem sabe dar um mergulho, ver o que há nas profundezas.

A filosofia de Ricoeur é uma grande filosofia do século XX; uma das maiores, sem qualquer dúvida. Custa pensar em um filósofo que tenha tido uma produção mais vasta e abrangente que a do Ricoeur. Não tem uma filosofia relevante do século com a qual Ricoeur não tenha de alguma maneira dialogado ou debatido. Nosso desafio e nossa oportunidade, como pesquisadores do século XXI, é tomar esse imenso legado que o filósofo nos deixou e ampliar e fortalecer esses diálogos e esses debates, além de abrir e promover a abertura de outros, novos.

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