Ernane Xavier, diretor do Laboratório de Física Aplicada e Computacional da Universidade de São Paulo, propôs uma distinção possivelmente fecunda entre pesquisadores e cientistas:
(…) é razoável pensar que na universidade existem os pesquisadores, aqueles que usam o método científico e formam pessoas, publicam artigos, lecionam e executam tarefas administrativas e de gestão, e existem os cientistas, que são aqueles que dentro da universidade realizam as mesmas tarefas que os pesquisadores mas que não se limitam às verdades absolutas e observam o mundo como que cercado por paradigmas a serem transpostos, e que, para estes, a natureza é um livro escrito em uma linguagem que não compreendemos, e têm a humildade de admitir que o pouco que sabemos deste livro é apenas uma tradução mal feita.
O trecho é algo obscuro, mas no contexto do texto (“Negros escravos cientistas e seus descendentes brasileiros esquecidos“) a conceituação se torna clara: de um lado estão profissionais contratados, do outro está uma capacidade humana geral — que os profissionais, é claro, possuem e praticam — de “engenhar”, de solucionar problemas. Talvez uma maneira mais simples de captar o sentido do que o autor diz é pensar em pesquisadores/cientistas e inventores, já que essa última palavra é mais larga e não se prende tanto a institucionalidades.
Com esse procedimento, Ernani consegue recuar a existência de cientistas negros já à população escravizada, por sua criatividade na luta contra as agruras cotidiana: “Ou seja, o cientista não precisa estar dentro de uma universidade e a ciência não pertence a um grupo específico. Neste contexto, sim!, muitos escravos foram cientistas e vislumbraram o paradigma da liberdade de forma metódica e muitas vezes técnica”. O objetivo disso no texto é por em perspectiva a notícia “Jovem negra de escola pública passa em primeiro lugar no vestibular mais concorrido do país“, dizer: há mais ao longo de toda a história negra do que esses assombros jornalísticos.
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É curioso perceber como a distinção pesquisador e cientista feita por Ernani vai na contramão da concepção de universidade que começa a ser desenvolvida a partir do fim do século XVIII. Como lemos em Organizing Enlightenment: Information Overload and the Invention of the Modern Research University, de Chad Wellmon:
Around 1795, scholars at the University of Jena, a hotbed of post-Kantian thought, added another dimension to these projects when they began to offer annual, encyclopedic lectures courses for students of all faculties. Their courses were designed to introduce students not to a specific science, or even the relationship among various classes of sciences, but rather to the particularly scientific character of what they considered authoritative knowledge. The main conclusion of there encyclopedic lectures was that the character of science could not be detached from the character of the scholars. [grifo nosso, p. 96]
Aqui, a ciência só é realizada por pesquisadores. Uma das palestras que avançou ideias do tipo foi, ainda segundo Wellmon, a de Johann Heinrich Gottlieb Heusinger, que via na enciclopédia — entendida como ciclo de aprendizado — “an ethical technology designed to form students into particular type of scholars”. Com isso, procurava combater “an ignorance of what ‘science is, and how the man of science (the scholar) distinguishes himself from other people, who don’t at all lack knowledge’” [p. 98]. O pesquisador é definido em oposição ao homem médio, a quem de todo não falta conhecimento, mas a quem faltaria o caráter necessário ao pensamento científico.