Da Odisseia: no Escuro da Noite Visão Tão Luzente

Um trecho do canto IV da Odisseia, de Homero, em que a deusa Atena aparece, em sonho, sob a figura de uma amiga, à esposa de Odisseu, Penélope. A divindade lhe fala das ameaças que pairam sobre o seu filho, Telêmaco. É a primeira vez na história em que ela assume uma figura feminina para interagir com os humanos. A Odisseia é um dos grandes clássicos da literatura mundial. Saiba mais.

Tal como o leão, que se encontra indeciso no meio de gente,
cheio de medo, ao sentir que lhe apertam o cerco doloso:
vê-se Penélope, assim, té que o sono agradável lhe chega.
Dorme assim, pois, reclinada, que o sono descanso lhe infunde.

A de olhos glaucos, Atena, concebe outro plano engenhoso:
forma uma imagem de sonho, mulher parecendo na forma
e com feições da nascida de Icário magnânimo, Iftima,
que com Eumelo é casada, morando eles ambos em Feras.
Essa visão ao palácio do divo Odisseu manda logo,
por que consolo levasse à tristeza da aflita Penélope
e conseguisse pôr termo aos soluções e ao pranto copioso.
Pela correia do fecho na câmara entrar pôde logo;
paira-lhe sobre a cabeça e lhe diz as seguintes palavras:

“Dormes, Penélope, com a coração por tal modo angustiado?
Não te consentem os deuses, que vivem feliz existência,
tanto chorar e afligir-te; ao teu filho ainda destinado
vir de tornada, porquanto ele em nada ofendeu aos eternos”.

Disse-lhes, então, em resposta Penélope muita sensata,
dês da soleira do sono, imergida em torpor muita suave:

“Mana querida, a que vens até aqui? Pois não é teu costume
vir visitar-me, em virtude da grande distância em que moras.
Mandas-me, agora, que cesse de vez com suspiros e dores,
Cedo meu nobre marido perdi, de coragem leonina,
que era entre os Dânaos notável por grandes e raras virtudes,
e cuja fama atingia toda a Hélade, até o centro de Argos.
Ora meu filho querido partiu no navio bojudo,
ainda criança, ignorando os trabalhos e arengas nas praças.
Por seu destino me aflijo ainda mais que por causa do esposo.
Tremo por ele e me inquieto; não vá acontecer-lhe algum dano,
quer em viagem, quer mesmo entre as gentes onde ora se encontra.
Muitos malvados contra ele planejam insídias sem conta,
com intenção de matá-lo antes que ele reveja o palácio”.

O pouco claro fantasma de Iftima lhe disse, em resposta:
“Ânimo! Cessa de tanto afligir com receio o peito.
Serve-lhe de companhia a que todos os homens desejam
ter ao seu lado qual deusa assistente — por ser poderosa —
Palas Atena, que se compadece do teu sofrimento.
Dela aqui venho a mandado, por que tudo, enfim, te contasse”.

Disse-lhe, então, em resposta, Penélope muito sensata:
“Se és uma deusa, de fato, e de um deus as palavras ouviste,
vamos, então me revela o destino infeliz daquele outro,
se ainda com vida se encontra e as delícias da luz ainda enxerga,
ou se é já morto, talvez, e na de Hades estância demora?”

O pouco claro fantasma de Iftima lhe disse, em resposta:
“Nada te posso dizer, com certeza, a respeito desse outro,
se é vivo ou morto; de nada nos serve falar aereamente”.

Tendo isso dito, esvaeceu-se o fantasma, qual sopro de vento,
pelo ferrolho da porta. A de Icário nascida desperta
logo do sono. Seu peito outra vez de alegria se aquece,
por lhe ter vindo no escuro da noite visão tão luzente.

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