[texto publicado originalmente na revista Úrsula]
É um grande momento para as girafas, os fãs do humorista Buster Keaton e as irmãs imaginárias de todo o mundo: o podcast History of Philosophy Without Any Gaps [“História da Filosofia Sem Qualquer Lacuna”, em tradução livre] se aproxima da edição nº 400, após quase 12 anos de publicação ininterrupta. Escrito e apresentado por Peter Adamson, professor de filosofia da Universidade Ludwig Maximilian, na Alemanha, o programa prosseguiu filósofo a filósofo – por vezes, reunidos em recortes temáticos –, movimento a movimento, de Thales de Mileto, considerado o primeiro filósofo (europeu), até (no momento em que escrevo…) Margarida de Navarra, incentivadora do humanismo francês. Didático e divertido – além da erudição, os episódios são pontuados por running gags, piadinhas que sempre voltam, como as que abrem esse parágrafo – o podcast passou por uns 20 séculos de debates metafísicos, científicos, políticos, éticos e estéticos na Europa e no mundo islâmico e gerou experiências semelhantes voltadas à filosofia indiana e africana, além de uma série de livros, já com seis volumes, que adapta o texto dos podcasts. Antecipando-se um pouco ao lançamento do número 400, conversamos com Peter sobre como tem sido essa trajetória até aqui, e discutimos com ele questões sobre as abordagens da filosofia: “Meu projeto é em essência sobre expandir nossa percepção do que significa a história da filosofia”.
O primeiro episódio de History of Philosophy Without Any Gaps foi publicado em 2010. Em dezembro, você completará 12 anos de trabalho contínuo. O podcast principal tem agora seus spin-offs e deu lugar a uma série de livros que segue crescendo. Como tudo isso tem sido para você? Você imaginava, no começo, aonde esse podcast o levaria?
Fato, tem sido um longo caminho até aqui! Eu definitivamente não tinha previsto quão grande esse projeto se tornaria. Isso soa um pouco ridículo, já que desde o início eu afirmei com todas as letras que ele iria cobrir a história da filosofia “sem qualquer lacuna”. Mas no começo eu assumi que a única tradição não-europeia de que eu trataria seria a filosofia do mundo islâmico; a ideia de falar sobre as filosofias indianas, africanas e chinesas (e talvez de outras) veio depois. Além disso, o projeto não foi originalmente concebido para uma série de livros, só um podcast, então eu pensei que não teria uma audiência tão grande. Então, meio que ele espiralou para além do que eu havia vislumbrado fazer, que era mais sentar uma vez por semana, escrever rapidamente sobre coisas que eu basicamente já sabia e gravar isso. Como eu estudo filosofia antiga e medieval, a perspectiva de cobrir muito material que fosse novo para mim parecia distante quando eu comecei. Mas eu realmente gostei disso, quero dizer, de descobrir novas tradições, textos e personalidades. Ainda mais, eu adorei ver a resposta dos ouvintes e, especialmente, interagir com pessoas fora da academia, o que muitos acadêmicos não chegam a fazer. No geral, esse é o meu principal hobby, e eu aprecio quase todo aspecto do processo.
Essa longa viagem te transformou de alguma maneira? Ter de estudar filósofos de diferentes épocas e lugares – alguns deles, penso, eram desconhecidos para você – modificaram a maneira como você ensina ou lê filosofia? Eu imagino que deve ser um exercício de manter a cabeça aberta.
Sim, definitivamente. Isso teve um grande e direto impacto tanto na forma como leciono quanto na minha pesquisa. Como professor, só fui capaz de oferecer várias aulas que dei aqui em Munique graças ao podcast; me refiro a aulas sobre filosofia indiana e africana. E eu escrevi muitas publicações que derivaram de leituras que fiz para o podcast. Eu até tenho um livro a ser publicado este ano (chamado Don’t Think for Yourself: Authority and Belief in Medieval Philosophy [“Não Pense por Si Mesmo: Autoridade e Crença na Filosofia Medieval”, em tradução livre]) que reúne muita coisa que eu pensava enquanto eu fazia minha pesquisa e gravava o podcast.
Você percorreu a Grécia Antiga, o Islã, a Idade Média, a Renascença e além. Os muitos filósofos de que você falou representam muitos diferentes entendimentos de filosofia – de como ela é estudada, ensinada e vivida, do que ela pode ou não fazer. Tendo em mente isso, como você responderia a essa eterna pergunta: o que é filosofia?
Já essa não é uma pergunta fácil! Claro que muitos me perguntam isso, e o que eu geralmente digo é que eu de fato não opero com uma regra escrita na pedra: é algo mais nesse sentido: se eu penso que vale a pena incluir no podcast, eu incluo. Já que o meu projeto é em essência sobre expandir nossa percepção do que significa a história da filosofia, eu estou feliz em arriscar expandir “demais” as coisas (na medida em que isso é um risco: quero dizer, o pior que pode acontecer é o público acabar aprendendo algo extra que não seja necessário). Mas se eu fosse tratar disso mais abstratamente, eu diria que nós temos de distinguir a questão sobre o que a filosofia é agora, para nós, da questão sobre o que ela foi em épocas anteriores. Algumas culturas (a China e a Índia antigas, por exemplo) nem mesmo tinham o nome “filosofia” e essa palavra ganhou significados tanto muito amplos quanto relativamente estreitos nos diversos períodos e lugares onde existiu. Por exemplo, como é frequentemente notado, na história europeia “filosofia”, até um passado razoavelmente recente, incluía a física; ao passo que no mundo islâmico, por um bom tempo, falsafa, termo que foi adaptado do grego, designava simplesmente “filosofia no estilo de Avicena e que aceita as suas ideias”. Portanto, algo muito mais específico. E claro que a nossa própria percepção do que conta como “filosofia” é igualmente um produto do nosso tempo e lugar. Ainda assim, eu penso que nós poderíamos dizer que há ao menos um conjunto de temáticas, como a natureza do conhecimento, o livre-arbítrio, a existência de Deus, etc, que é sem controvérsias entendido como filosófico. Assim, se pressionado, eu diria que estou apenas cobrindo as maneiras pelas quais esses temas foram abordados através das épocas e das culturas.
Os caminhos pelos quais seu podcast nos leva não são só temporais, mas também geográficos. Nós o ouvimos falar da filosofia em Bizâncio, na Índia, na África. Faz diferença, para a filosofia – com todas as suas aspirações à universalidade – ter raízes em algum lugar? Se é o caso, como o território de um filósofo pode dar forma ao seu pensamento?
Isso é absolutamente crucial, na minha opinião. Não existe filosofia ou filósofo que não seja moldado pela sua época e lugar, e qualquer um que nega esse fato só está ignorando o modo como seu tempo e lugar o moldou. É por isso que eu tento devotar tanta atenção quanto possível para o contexto histórico ao longo dos podcasts; nessa direção, em episódios recentes eu falei bastante sobre como a Reforma, a prensa, a descoberta do então chamado “novo mundo” e outras coisas do tipo impactaram a filosofia e as formas de perspectiva filosófica que foram criadas. Mesmo algo tão básico quanto quais tópicos ou questões um filósofo decide enfrentar é condicionado por essa espécie de fator contextual; para dar um exemplo óbvio, não é coincidência que os filósofos tenham começado a pensar sobre liberdade de consciência e como lidar com a diversidade de opiniões bem na época das Guerras de Religião. Isso é mais óbvio em algumas áreas da filosofia do que em outras; tipo, claro que a filosofia política reage a um contexto histórico, mas isso pode ser menos óbvio nos casos da metafísica ou da epistemologia. Porém você quase sempre encontra algum meio de entender melhor um pensador conhecendo mais sobre o contexto.
Eu me lembro de você ter dito que uma das razões pelas quais começou o podcast foi que os cursos de história da filosofia saltavam longos períodos do pensamento humano, indo de um grande nome a outro. Pode falar mais do espaço que a história da filosofia tem em universidades americanas e europeias? Você diria que ela é subvalorizada?
Varia muito. Na Alemanha, onde eu leciono agora, a história da filosofia tradicionalmente é muito central, ao passo que em muitas universidades americanas ou inglesas houve um forte foco sobre temáticas “sistemáticas” contemporâneas. Eu acho que, provavelmente, hoje em dia a abordagem padrão seria ter um mix de história e filosofia contemporânea, com dosagens variadas de ambas. Pessoalmente, penso que seria bom se houvesse mais variação no modo como a filosofia é ensinada: quero dizer, uma coisa que eu aprendi fazendo o podcast é que há um MONTÃO de filosofia, portanto de fato não é possível cobrir isso totalmente em apenas um departamento. Dessa forma, seria bom ver, por exemplo, mais departamentos americanos especializados em filosofia asiática, enquanto outros se focam em filosofia latino-americana etc. Claro, há algum valor na ideia de ter pontos de referência e linguagem comuns, algo que todos os formados em filosofia têm, mas eu não creio que esse objetivo deva ser tão incansavelmente buscado, a ponto de tornar a diversidade de abordagens impossível.
A filosofia analítica se orgulha (ou se orgulhava) de não estudar filosofia per se – “livros velhos e filósofos mortos não importam”, diriam os filósofos analíticos, “nós nos focamos em problemas filosóficos”. Isso pode levar, na minha opinião, a uma visão panorâmica da história da filosofia que perde muito da criatividade do passado. Você concorda, o que diria sobre isso?
Eu gosto de dizer que a filosofia que ocorre agora é só a parte mais recente da história da filosofia, e nós não sabemos bem se ela é uma parte que particularmente valha a pena, na medida em que temos tão pouco recuo em relação a ela. Certamente há muita filosofia sendo produzida, mais do que nunca, acho. Então, presumivelmente, um tanto disso passará no teste do tempo, e ao contrário do que você possa imaginar eu realmente gosto da filosofia analítica contemporânea, aprecio ter colegas que trabalham nessa área e tento me manter informado o quanto posso sobre os desenvolvimentos que eles fazem nos seus campos. Entretanto, eu não consigo mesmo levar a sério quando as pessoas dispensam a história da filosofia como se ela fosse desinteressante. Tipo, como é sequer possível que você possa avaliar? Você já deu uma olhada, digamos, na epistemologia [da escola indiana] Nyaya ou na teoria da gradação da existência [do filósofo iraniano do século XVII] Mulla Sadra? Você sequer sabe do que eu estou falando? Se não, então como você sabe que não tem valor? Isso simplesmente soa como fanfarronice maquiando ignorância deliberada.
Aqui no Brasil o ensino e a pesquisa em filosofia são principalmente históricos. O “método estrutural” aplicado por Martial Gueroult e outros tiveram grande impacto no país. Seja como for, esse é só um meio de estudar a história da filosofia. Qual o seu?
Isto é relevante para a pergunta anterior, já que o meu modo de fazer filosofia é mais decisivamente informado pela filosofia analítica. (Claro que eu não sou uma exceção à regra de que os filósofos são moldados pelo seu tempo e contexto!) Você pode ver isso pelos assuntos que eu escolhi tratar na minha pesquisa e também no podcast – embora eu tenha me esforçado para ampliar minha percepção do que conta como filosoficamente válido. Provavelmente isso também transparece no modo como eu escrevo: me empenhando por clareza, por fazer distinções, por focar em argumentos e contra-argumentos, todas essas coisas usualmente associadas com a filosofia analítica.
No momento em que escrevo, você chegou à França renascentista. Você pode ter mais uns dez anos de trabalho antes de chegar à contemporaneidade. Está preparado?
Como eu sempre digo, “não tenho planos de parar!”. Já que eu gosto tanto disso, já que eu sei que há pessoas me aguardando chegar às excitações do século 17 e além, e já que há várias culturas não-europeias que quero abordar –, sim: eu espero continuar fazendo isso por outra década e ainda mais. Vamos esperar que isso dê certo!