Uma das primeiras ações de Jair Bolsonaro na presidência foi a extinção do Ministério da Cultura (MinC). Seu antecessor, Michel Temer, havia fechado a pasta temporariamente, mas, pressionado pelo setor cultural, a recompôs. Bolsonaro, por sua vez, a encerrou “de vez” – fundiu-a com Esporte e Desenvolvimento Social e a reduziu a uma seção do novo Ministério da Cidadania, a Secretaria Especial de Cultura (Secult), depois transferida ao Ministério do Turismo. À frente da Secult estiveram oito secretários, dos quais se destacam o dramaturgo Roberto Alvim – caído após copiar trechos de discurso nazista em uma transmissão oficial – e os atores Regina Duarte e Mário Frias. Questionado sobre o que essas gestões representaram para as políticas públicas de cultura, o jornalista Lincoln Spada – autor, com o cientista político Rafael Moreira, do livro O Fim do Ministério da Cultura – Reflexões sobre as Políticas Culturais na Era Pós-MinC (2022) – o define com duas palavras: “Desastre e desmonte”. Para a Úrsula, Lincoln construiu um panorama dessa corrosão e discutiu as perspectivas do novo MinC, recriado no governo Lula e colocado sob direção da cantora Margareth Menezes.
O Fim do Ministério da Cultura reúne entrevistas com profissionais do setor cultural – artistas, produtores, gestores –, apresentando uma pluralidade de visões sobre o dia-a-dia da produção e da política da cultura no País, inclusive com opiniões conflitantes a respeito da própria necessidade de um ministério da cultura. É um interessante documento sobre os debates possíveis nesse momento de deriva. A partir dele, Lincoln comenta como permanece o que foi proposto por ministros anteriores – Gilberto Gil (2003-2008), Juca Ferreira (2008-2010 e 2015-2016, sendo um dos entrevistados do livro), Ana de Hollanda (2011-2012) e Marta Suplicy (2012-2014) –, alerta sobre os desafios financeiros e práticos que se colocam diante de Margareth e indica pontos de atenção para quem atua nesse campo ou se preocupa com as questões culturais.
Desde o lançamento de O Fim do Ministério da Cultura, tivemos mais um ano de governo Bolsonaro, com a saída de Mario Frias e as posses de Hélio Ferraz e – no apagar das luzes – de André Porciúncula. Agora se pode fazer o balanço completo: o que significou a gestão de cultura sob o governo Bolsonaro?
Um misto de desastre e desmonte das instituições e dos programas, [contido minimamente por alguns] servidores e quadros técnicos nos escalões inferiores da recém-finada secretaria. Das equipes rotativas destes quatro anos, talvez a que tivesse eventual convergência técnico-política [com o propósito da pasta] foi a nomeada pela Regina Duarte – embora eu discorde de sua visão de mundo. Não à toa, [foram os remanescentes do seu grupo que executaram] a Lei Aldir Blanc, a única marca positiva do governo em comparação com outros programas federais.
Há três símbolos da era Bolsonaro na área da cultura. O primeiro foi o abominável discurso estético-ideológico de Roberto Alvim, [retrato da visão do Poder Público de então], que permitia não só narrativas similares por parte dos demais dirigentes federais (vide falas públicas de Sérgio Camargo) como o estrangulamento das culturas populares via falta de editais de pesquisa e financiamento. [Além disso, dava-se o poder de] escolher qual manifestação artística pode ou não ser produzida, [impondo] vultos de censura ideológica aos servidores e aos trabalhadores da cultura (como nos embates públicos com a MPB no Carnaval e na recusa de entregar prêmio ao Chico Buarque). Ainda mais, isso se desdobrou em uma autocensura dos próprios trabalhadores e instituições culturais de menor porte, que passaram a optar pelo hobby cultural à discussão democrática sobre o campo das artes.
Outro símbolo se dá pela inação federal diante do incêndio do acervo da Cinemateca Brasileira, além da falta de recursos para manutenção e articulação de programas e instituições, como se deu com o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e com a Fundação Rui Barbosa, também como fruto da briga pública do presidente contra governadores eleitos do Nordeste e Rio-São Paulo. As instruções normativas da Lei Rouanet ora tardavam, ora cortavam as costumeiras programações arrasa-quarteirões dos centros culturais estaduais, como museus e teatros, adiando festivais e repercutindo numa concorrência desleal entre produções de entretenimento e produções artísticas independentes [pela busca de espaço ou de financiamento].
O último ocorreu no fatídico 8 de janeiro com a depredação de patrimônios e bens culturais em Brasília, pelos, ao meu ver, apoiadores do governo recém-derrotado nas urnas. Uma ode do desprezo às artes e à identidade plural de nosso país. [Trata-se de] uma parcela maior da sociedade que já estigmatizava a classe artística e que, de forma acentuada pelo isolamento social na pandemia, está em descontinuidade com políticas de formação de público para as bibliotecas, as livrarias, os teatros, os cinemas, os museus, as praças públicas.
No término do livro, vocês se questionam: “Quais serão os rumos da cultura quando a pandemia for superada? Qual será o destino do nosso segmento cultural após a era Bolsonaro? Voltaremos um dia a ter um Ministério da Cultura, ou a Secretaria Especial será o novo normal?” Essas questões têm respostas agora. Diante delas, como vocês veem a retomada do ministério? E a opção por Margareth Menezes para a pasta?
A retomada do status ministerial da Cultura é uma promessa de campanha cumprida pelo Lula, que em seus discursos de recém-eleito e de posse realçou a importância e o significado do setor na Esplanada dos Ministérios. O MinC já renasce grande, tendo como desafio as execuções das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, para reavivar o Sistema Nacional de Cultura junto aos estados e municípios. Sinaliza também aos governadores e prefeitos a importância de ter um órgão executivo fortalecido em suas atribuições.
Na transição, a Margareth se dispôs publicamente a participar da construção das políticas culturais, e é indicada pessoalmente pelo Lula e sua família – foi um dos primeiros nomes confirmados à imprensa. Ou seja, desde já garante ter um bom diálogo com o presidente, o que é importante para prioridades da agenda pública.
É impossível não se encantar com o seu carisma e vê-la, como Gilberto Gil o foi há 20 anos, como o rosto ideal da cultura popular brasileira e de suas expressões artísticas, representando bem os trabalhadores do setor no País. A princípio imaginei que viria alguém mais técnico, mas sua alma artística e a sua expertise no terceiro setor podem contribuir e muito para a gestão ministerial. Aliás, o setor público cultural é reduzido demais para que seus titulares sejam meramente figurativos, então compreendo que ela exercerá um bom protagonismo junto à sociedade e internamente como ministra da pasta.
Pouco depois daquelas perguntas, vocês alertam: “Seja qual for o resultado do pleito de 2022, o trágico impacto da era Bolsonaro já está dado”. Menezes tem à sua frente, como vocês supunham, um cenário de terra arrasada? Há espaço para que ela deixe uma marca, traga renovação, ou só lhe caberá reconstruir?
O relatório de transição bem descreve que o atual governo herda reduções orçamentárias (quase 50%), de organograma (mais de 60%), de paralisação de atividades finalísticas e de um setor com patamar de geração de renda e riqueza similar equivalente ao de 2019. No primeiro momento, como o próprio plano de governo indica, deverá se buscar a recomposição financeira do MinC.
Ao mesmo tempo, o plano indica a fomento de valores civilizatórios e democráticos, como também o fortalecimento das culturas popular e periférica. Ainda há no imaginário coletivo dos artistas os avanços do descontinuado Pontos de Cultura (o próprio governo Temer fez convênio com São Paulo em decorrência do êxito do programa), o que pode ser o caminho mais natural a curto prazo para a era Margareth Menezes.
O maior desafio será mediar o não fechamento de espaços culturais públicos e privados de memória ou difusão artística. Creio também [que a ministra terá a sensatez para perceber] que um programa futuro com a sua marca será fruto de uma conferência nacional do setor.
Mesmo considerando as dificuldades de implementá-las nesta gestão, a partir das entrevistas do livro e das suas próprias experiências profissionais, quais as tarefas que se colocam para um Ministério da Cultura no Brasil? O legado de Gil e Juca é suficiente ou é preciso avançar nas estruturas e horizontes que trouxeram?
Os legados de Gil e Juca – incluindo os de Ana de Hollanda e Marta Suplicy – são uma baita estrutura, reflexo temporal de 14 anos de diálogo com o setor cultural, com a base e para a base de trabalhadores da cultura. Sim, devem servir de retrovisor à nossa cena contemporânea no mundo das artes.
Sinto que há duas grandes demandas do setor cultural mais urgentes no debate público. Uma são as questões identitárias e ações afirmativas – que o governo tem condições de atender gradualmente. A outra corresponde a um pensamento dos dirigentes, pós-direito à previdência na Constituição de 1988, o qual já mobilizou a maioria da população: o de que a cultura é um setor que deva ser de autossustentabilidade financeira.
Ou seja, de que é possível que um espaço cultural privado, por ter tido financiamento federal por três anos, consiga a sua manutenção. Que as produções audiovisuais não precisem de incentivo público. Que a estatização de um museu é dívida ao invés de investimento. E é justamente neste momento que o MinC precisará ganhar o debate público, conscientizar agentes culturais e gestores públicos, e criar ações de fomento fundo a fundo [para mostrar] que a autossustentabilidade é balela: é essencial que o Poder Público participe e module programas [para induzir] a iniciativa e o crescimento do setor cultural produtivo.
Talvez possamos pensar, pela composição dos ministérios de Lula, que a cultura está mais espraiada no governo. O Ministério dos Povos Indígenas deve defender a pluralidade de culturas, no sentido antropológico, do país, e os ministros da Justiça e da Igualdade Racial têm uma compreensão sobre a especificidade de cada vivência. Concordam? Acham que isso pode produzir algo interessante em cultura?
Vale incluir também o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania nessa rede de articulação progressista que pautará a cultura. É, de longe, uma composição ministerial muito mais qualificada e atenta às demandas sociais que o desmonte bolsonarista. Os escalões abaixo ainda estão em fase de reformulação.
O MinC tem um histórico de programas exitosos quando co-financiados ou idealizados intersetorialmente, como as antigas Praças de Esportes e Cultura, os editais de Cultura Viva de fomento às mídias alternativas, e o Mais Cultura nas Escolas. Diante dos baixos orçamentos impostos pelo teto de gastos, a intersetorialidade dos programas federais será essencial para o êxito, visando uma retomada enfim setorial das políticas públicas a longo prazo, pós-2027.
Além de eventuais premiações em conjunto a iniciativas socioculturais, sou cético quanto à possibilidade de desenvolver projetos intersetoriais antes de 2024. Assim, creio que muito dependerá da sensibilidade e sintonia dos ministros, e o quão antes façam a escuta popular já a partir deste ano com a retomada das conferências nacionais de cada área.
Para terminar: vocês estão pensando já em um novo livro, algo como O Recomeço do Ministério da Cultura? Que temas querem investigar nesse campo ou, ainda, quais problemáticas sugerem que jornalistas e pesquisadores abordem? Noutras palavras, que debates é preciso fazer para que o ministério cumpra o seu papel?
Tenho um carinho mútuo por esse livro e pela parceria com o Rafael iniciada ainda em artigo a quatro mãos em 2016. Principalmente porque a sua conclusão também se deu durante a fusão temporária da secretaria de Cultura onde atuava (setembro de 2021 a novembro de 2022) em um município de grande porte, [mudança] que, pessoalmente, considero consequência dos exemplos federal e estadual. Isso me fez ver que em determinados contextos socioeconômicos, as alterações administrativas podem ser necessárias em municípios, a depender do bom olhar do gestor da pasta às áreas.
Creio que o livro tenha sido a melhor forma para que a comunidade saiba dos impactos de um retrocesso ministerial que considero estar no passado. Embora eu mantenha meus ideais sobre as missões da cultura como política pública, até por razão de formação acadêmica e, desde 2022, de um diagnóstico de saúde mental, sinto que completei minha contribuição para o setor.
Aos demais trabalhadores da cultura, incluindo os pesquisadores, sugiro atenção para uma nova geração de gestores municipais que [se integrarão à área] até 2030. Explico. Até a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), em 2012, parte das cidades de grande porte estabilizaram secretarias de cultura. Desde então, houve uma ampliação dos órgãos, mas com defasagem de recursos humanos e orçamentários, [implicando] comumente em pouca prioridade [dada a eles pelos] prefeitos e em alta rotatividade dos dirigentes de secretarias ou diretorias de Cultura.
Mas, desde 2020, houve a Lei Aldir Blanc e, agora, a Lei Paulo Gustavo, que aumentarão os recursos das secretarias fundo a fundo, o que [as colocará na prioridade] dos prefeitos e evitará rotatividade dos dirigentes até 2028.
Se antes os movimentos culturais discutiam e podiam se opor a dirigentes com pouco interesse no setor, hoje as futuras divergências entre movimentos e dirigentes serão mais prolongadas. Será um período em que os dirigentes precisarão se formar, e que os movimentos deverão ampliar a atenção às falhas públicas, mas também preferir o diálogo ao embate, para que isso não resulte em prejuízo ao acesso aos direitos culturais em sua cidade.