No conto/ensaio “Epifania, provas, erotismo, corpo-sim, corpo-não”, parte de Ó, livro do Nuno Ramos, se manifesta em relação ao erotismo um dos simbolismos que o filósofo Gaston Bachelard identifica em A Psicanálise do Fogo. Em ambos, o nosso conhecimento sobre esse elemental tem um precedente no saber sobre o nosso físico. No primeiro, lemos:
O encaixe lubrificado dos órgãos sexuais parece ser o centro de um labirinto em que nada é alheio a nada, em que a toda curva corresponde uma outra, em que uma regência minuciosa e universal de cada detalhe nos surpreende enquanto gememos. Gememos porque experimentamos em nossa própria pele o mecanismo sutil que dá forma ao fogo, costurando sua crista ao líquido e ao gelo, que esfarela a pétala para cobri-la de escamas, que faz do pé uma sandália, dos olhos uma pálpebra, como se estojos poliédricos agasalhassem cristais incongruentes (nossas lágrimas, por exemplo). [p. 116]
Nuno Ramos se refere ao “mecanismo sutil que dá forma ao fogo”, presente “na nossa própria pele”. E é nessa identificação entre corpo e comburente que Bachelard encontra nosso entendimento ancestral do que é o fogo:
In the first place it must be recognized that rubbing is a highly sexualized experience. Merely by glancing through the psychological documents amassed by classical psychoanalysis one will have no difficulty in convincing oneself of this fact. Secondly, one need only make a systematic study of the items of information gained by a special psychoanalysis of the impressions pertaining to heat, to be convinced that the objective attempt to produce fire by rubbing is suggested by entirely intimate experiences. In any case, it is in this direction that the circuit between the phenomenon of fire and its reproduction is the shortest. The love act is the first scientific hypothesis about the objective reproduction of fire. Prometheus is a vigorous lover rather than an intelligent philosopher, and the vengeance of the gods is the vengeance of the jealous husband. [p. 13-14]
Nesse momento de A Psicanálise do Fogo, Bachelard investiga qual a relação de um homem primitivo ideal em relação ao fogo, desde os desencadeados pelo acaso até os criados por esses humanos. Como lhes teria ocorrido a ideia de produzir o que lhes pareceria tão transcendente e irregular? A ideia, para o filósofo, surgiria dessa relação que temos com nossa carne: com a fricção, com o gesto repetido, geramos calor em nós mesmos. É assim que “o ato de amor é a primeira hipótese científica no que se refere à reprodução do fogo”, é assim que Prometeu, em vez de ladrão astuto, é um “amante vigoroso” — pois se transfere isso que aprendemos no prazer à manipulação da natureza.