Viver é represa e desobediência: “Travessências”, de Melissa Suárez

Crítica CulturalJornalismo

[texto publicado originalmente na revista Úrsula]

A água vem subindo. Encharca nossos calçados, chega aos joelhos, passa da cintura, bate no queixo. Nada que vá nos impedir de ir ao trabalho e cumprir nossas funções de modo normal. Não é? A vegetação é espessa. De um lado e do outro não conseguimos ver nada através dos caules e espinhos. O caminho de cercas vivas que se alonga e se intrinca age como antolhos. Resta seguir adiante. Não há problema em só seguir adiante. Certo?

Extraio essa imagética de Travessências, da escritora Melissa Suárez. Lançado em 2020 pela editora Patuá, o livro reúne nove contos que, com versatilidade e engenho formal, registram momentos da vida – na maioria, de mulheres – em que mudança e inércia dão lugar uma a outra ou se aproximam em tensão. Assim, em histórias que abordam desde o estresse do trabalho até a incompreensão nas relações conjugais e familiares, Melissa expõe, de um lado, amarras – da rotina, da depressão, do ressentimento, da frustração – e, de outro, horizontes, pois, nos dirá ela, pode-se romper até o mais velho grilhão.

Essas histórias são elaboradas, com uma exceção, por meio da ótica de mulheres. O livro é, assim, como que um caleidoscópio de vivências femininas. Alguns exemplos disso são “O que o inverno disse à primavera”, que é a amarga carta de uma ex-esposa à madrasta dos seus filhos; “Pica pau”, em que uma menina, abusada pelo tio, conta o crime à tia e é silenciada; e “Você não tem disciplina”, compilação de mulheres sobrecarregadas pelo cotidiano, capazes de “levar a vida”, mas não de alcançar ideais que pesam sobre elas.

A exceção, “No algodão das suas brancas nuvens”, é escrita do ponto de vista de um pai, mas funciona mais para acusar o autoritarismo ignorante com que sempre tratou a mãe, a filha e a neta. Esse pai, é possível afirmar, reaparece em “Interrompendo a trilha”, mas agora sob a voz da filha que o acolheu, idoso, em sua casa, e que lida com novas e velhas mágoas trazidas por ele. Digo “é possível afirmar”, pois a conexão não é explicitada, algo que se passa com outros contos do livro. Pela analogia, podemos aceitar que se tratam de momentos diversos das mesmas vidas, não obstante, que sejam apenas variações de um tema é até mais plausível, pois a diferença no mesmo guia o estilo da obra.

Cíclica e quebradiça

Em consonância com os seus dois polos – a mudança e a inércia – as nove narrativas são contadas, quase todas, no que chamarei de ciclos (casos no quais a estrutura do texto é marcada por cenas e/ou formatos de frases e parágrafos que retornam, com alterações mínimas, de tempo em tempo) e quebras (em que se acumulam situações e fragmentos, por vezes mais sugerindo que evidenciando). Esses recursos colaboram para transmitir, no nível da forma, os afetos dos personagens: envolvem o leitor em gestos travados ou automatizados ou – pela sua própria reincidência no tempo – ressignificados.

O conto “Devolva minha vida” é um exemplo desses procedimentos. O ritmo sincopado é visível nas seções em que se intercalam pedaços de diálogos e descrições concisas:

Encontro

“Oi”

Casual.

“Oi”

Esperado.

“Oi Danilo…”

Indiferente.

“Oi”

Indesejado.

“Quanto tempo!”

Cronologia

“Pois é, desde a época do cursinho.”

Pontuada.

“Você tá lá ainda?”

Desconcertada.

“Tô, tentando… uma hora eu passo…”

Condescendência

“Claro, pra algumas pessoas demora mais…”

Planejada.

Já o retorno cíclico aparece em blocos que intercalam os estilhaços de diálogo como este posto acima. São eles menos narrativa paralela e mais releitura alegórica do que é visto “em primeiro plano”: se, em um nível, a protagonista perde o relacionamento e patina na vida profissional, no outro uma mulher caminha sem pausa e sem achar pouso:

É um prédio grande, com vários andares similares, com vários corredores parecidos, com inúmeras salas iguais. Ela entra. As portas idênticas têm papéis com diferentes nomes. Ela corre. As portas todas estão igualmente fechadas. Todos já entraram. Ela não acha seu nome na primeira porta, nem na segunda, nem na próxima, nem na outra, nem nas outras.

Essa construção voltará algumas vezes, diversa, mas igual:

É uma cidade grande, com bairros amplos, de avenidas largas, com vários prédios grandes, com vários andares similares, com vários corredores parecidos, com inúmeras salas iguais. Ela vai. As avenidas idênticas têm placas com diferentes indicações. Ela corre. Calçadas e asfalto estão completamente vazios. Todos já foram. Ela não acha o nome certo na primeira placa (…). Ela não acha o nome na quarta placa, nem na quinta, nem na próxima, nem na outra, nem nas outras.

Ciclo e quebra vão ser usados juntos ou separados e de maneiras distintas (por exemplo, “Interrompendo a trilha” conta com trechos que se interpõem a uma narrativa primeira, contudo, trazendo memórias dolorosas em vez de alegorias). Seus efeitos, ademais, são amplificados pela sensibilidade da autora quanto a como o escrito é disposto na página. Além da descrição palavra a palavra e do uso do itálico, já vistos, ela, em “Travessência”, para contar a história de gêmeas que, de vez em quando, vivem a vida uma da outra, faz uso de colunas paralelas, como, por outras razões, o filósofo Jacques Derrida em Glas.

Vigiada e classificada

Outra ferramenta literária que se sobressai em Travessências são as formas da narração, tanto nas pessoas comumente usadas – primeira e terceira – quanto na segunda:

Você calcula 45 minutos até o próximo choro. Suas mãos são o transporte dos pratos no seu movimento pendular cotidiano, da mesa à lixeira, da lixeira à cuba e da cuba ao escorredor. A palha de aço pega pra si parte do esmalte do seu dedo indicador, mas os bocais do fogão estão tinindo. Em nova checagem, a respiração pesada é indício de que você tem pelo menos mais 20 minutos, talvez meia hora. É o suficiente. No canto estão a corda e os halteres. Quinze meses, né? Já era para você ter perdido a barriga da gravidez. Mas você dá meia volta, derrama Nescau em uma lata de leite condensado e senta-se no sofá diante da TV. Você não tem disciplina.

O tom do narrador é derrisório e há algo de persecutório no acompanhamento que faz de cada ação. Seria esse aquele persecutor within, perseguidor interno, que é lembrado por Bob Dylan? Só nós mesmos podemos, assim tão próximos e constantes, julgar a nós mesmos (no caso deste conto, “Você não tem disciplina”, as personagens, diversamente da canção citada, “Jokerman”, estariam sempre um passo atrás desse stalker íntimo…). Caso o narrador que enuncia o “você” seja não pessoal, mas onisciente, ainda assim se mantém seu caráter normativo, o que nos leva a outra das marcas fortes do livro: o estar sob observação, nas suas várias formas, marca as condições dos personagens do livro.

O exemplo mais claro disso é “De: Helena / Para: ______”, em que uma mulher se torna, à sua revelia, o centro de atenções românticas: durante uma aula, ela recebe flores; na saída da universidade, encontra um namorado com quem havia terminado, que discursa com microfone e lhe pede em casamento. Por um tempo, ficamos nesse momento tenso em que não sabemos o que ela fará, e enquanto isso a multidão opina – sobre o homem, sobre ela, sobre a atitude, sobre a resposta esperada. Melissa consegue escrever bem a voz coletiva, e indicar o quanto pesa. Demonstra também o quanto ela é frívola: quando Helena diz “eu não te amo”, as pessoas se adequam a novas certezas rapidamente.

Outra elaboração do olhar do outro é marcante em “Hidrodinâmica do Nada”:

Mal estacionado, seu corpo só tem duas ações voluntárias e três membros autônomos: a mão que tecla pela sétima vez o número dela e os olhos que observam a praça. (…) São poucos os que passam. O técnico de tv a cabo que estacionou em local proibido. Um idoso que sai de um mercadinho. Gente que entra e sai de uma padaria. A padaria te lembra que você está com fome e que é preciso almoçar. Quem te vê saindo do automóvel acionando o alarme e andando deve pensar que você é uma pessoa normal em um dia completamente normal. Não está acontecendo nada. Seus passos rápidos dão impressão de segurança ou pressa mas é que você continua precisando de direção. (…) A moça-com-bebê-que-estende-a-mão faz o movimento a você e ao pegar a carteira para ver se tem algumas moedas tudo cai. Você tem certeza de que tinha segurado a carteira e não entende a queda.

O que as pessoas devem estar pensando e a impressão que os gestos dão – o acosso do ser visto está presente. O trecho seguinte reelabora outra vez esse perspectivismo:

Sai pelo fundo do caixa o senhor com sacola de feira (…). Um carro é estacionado, estranha dificuldade para baliza com tanto espaço disponível. Motorista inexperiente, talvez. (…) Tal motorista vai até a padaria e à porta lida com a abordagem de uma mulher muito jovem com um bebê nos braços. Uma ajudinha, por favor? Qualquer moedinha serve. A pessoa-que-não-sabe-fazer-baliza pega a carteira sem mudar a expressão no rosto. A mulher fica até em dúvida se o gesto é para ela. A carteira vai ao chão, espatifando seu conteúdo de cartões de banco e de crédito, algumas notas e papéis inúteis. A moça, mesmo com o bebê, se mostra mais ágil para recolher essas coisas do que quem as possui, que fica sem ação por alguns segundos.

A mesma cena se desdobra, com a mudança do ângulo de observação. O que assistimos aí desmente o que a personagem pensara de si (não é vista como “normal”) e cola sobre ela ainda outros rótulos (ele é até mesmo um tipo, a pessoa-que-não-sabe-fazer-baliza).

Opaca e resiliente

Nossas vidas – circulares, fracionárias, examinadas – são destarte condenadas à asfixia? Talvez não: porque há pontos cegos e tempos de trégua, temos caminhos de escape.

O citado “Travessência” conta a pequena utopia das gêmeas que – se fossem destino as coisas que se acostumaram a fazer, os caminhos que terminaram por seguir, as opiniões das pessoas sobre o “jeito” de cada uma – não seriam mais que seus tipos: Laura, mulher de viagens e relacionamento livre; Luara, mulher da disciplina e do casamento. Mas não é destino, porque elas podem atravessar de uma configuração de viver à outra. Laura se cansa da liberdade, vira Luara; Laura se cansa do comprometimento, vira Laura. E vice-versa. O olhar que classifica e ata não pode ver tudo e pode ser enganado pelo que vê.

Já “Poeira leve, poeira densa” exibe um dia-a-dia progressivamente corrosivo, mas que, com riso, cinema, brincadeira e desabafo alcança uma regeneração ou, ao menos, uma volta a um grau zero, “pronto pra outra”. É possível atravessar, chegar do outro lado.

O título Travessências, assim, parece definir um movimento contínuo, que é constitutivo do que somos, mas se vê capturado e contido, o que não significa que está em definitivo preso e determinado. Em várias partes do livro, surgem imagens que ilustram esse jogo. Em “Poeira leve, poeira densa”, a enchente acua, porém recede. Em “De: Helena / Para: ______”, forçam-se saídas no labirinto. Sim, somos canalizados. Mas saberemos vazar.

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