[texto publicado originalmente no Digestivo Cultural]
Variando entre o entusiasmo e o desprezo, a polarização em torno de Cisne Negro se deve às diversas camadas em funcionamento no filme. O longa de Darren Aronofsky é um drama contado com elementos do suspense e do terror, assim como é uma releitura de um trabalho clássico (O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky); possui elementos técnicos de destaque, ao passo em que seu roteiro cai por vezes no clichê. É uma narrativa que se frui pela superfície, com seu potencial de tensão e choque, e uma obra que trata de aspectos fundamentais da arte: a autodestruição como forma de criação, as frações de vida cifradas em símbolos, o (des)equilíbrio entre razão e sentimento.
O original traz a história de uma moça presa em corpo de cisne, só passível de ser libertada pelo amor verdadeiro. No entanto, seu redentor, enganado, se apaixona por outra, e a ela só resta a maldição; sem esperança, se lança ao abismo. Em Cisne Negro, um grupo de dança prepara uma nova montagem do clássico, procurando renová-lo: a atriz principal será tanto rainha cisne preterida quanto seu adversário, o cisne negro aliciador. A protagonista, Nina Sayers, interpretada por Natalie Portman, consegue a vaga de forma inesperada e frágil ― o seu esforço por se manter como estrela emula a precisão de ser notada da personagem de O Lago dos Cisnes, que só será salva se escolhida. Nesse sentido, Nina também se entrega ao precipício, morrendo de fato duas mortes simultâneas: corrói quem era para comportar um outro eu e destrói qualquer eu que haja para se fundir ao personagem.
A premissa é, então, poderosa ― como é que se conciliam dentro de si tendências a priori opostas de uma mesma personalidade? A narrativa de Cisne Negro fornece uma resposta. E é curioso como essa narrativa depende também de condescendência exterior: suas sequências ou personagens são comuns demais no cinema. Nina é a garota retraída, de pouca experiência de vida, que se entregará a excessos e será mais completa no fim. A mãe de Nina é superprotetora e impõe um cotidiano cheio de restrições à filha (a situação é algo absurda, como a de O Jardim Secreto, em que um menino não pode sair de seu quarto por, de acordo com os parentes, ser doente). O diretor do grupo de dança é artístico, sensual, em busca de certo traço de caráter, tentando fazê-lo brotar de sua atriz. Tudo isso soa repetido, mas basta catalogar clichês para esfarelar um filme? Eles não podem servir a seu efeito?
No caso de Cisne Negro, é possível que esses lugares comuns sejam mesmo úteis. Tragédia dramática que se faz como suspense, o filme trabalha com as expectativas que cria. Quando um bastão surge e é logo escondido, sabemos que algo deve ocorrer com ele. Sabemos que há conflito iminente entre mãe e filha, e que há entre o diretor e atriz tensão passional que deve se resolver de algum modo. Sabemos precisamente quando vemos certa bailarina, que ela é a antagonista, o perigo evidente às pretensões de Nina. Lily é a garota descontraída, de muita experiência de vida, que apresentará os excessos à sua amiga. Não é por serem esses traços tão marcados que podemos especular? Suspense de núcleo trágico, seus personagens não são complexos e inesperados, mas simples, nos levando do conhecido à catarse.
A recepção efusiva do filme parece ter posto algumas pessoas em guarda: de escudo e lupa seguiram para o cinema, prontos a desmistificar e a salvar a humanidade da ignorância. Porém, sem a negociação de sentido que o terror, que o suspense, que a tragédia exigem, não existe o envolvimento; e se o espectador não se deixa envolver, perde boa parte do que é a obra de Aronofsky. É uma produção menos para pensar e mais para sentir, e aqui caberia uma nota de crítica impressionista: este crítico não pôde se mexer quando tudo acabou; e já com esse texto em germe checou o público ao redor, para saber se era o único, e não era; e ouviu, no dia seguinte, de gente diversa, o mesmo relato da experiência que teve. O filme funciona, e isso é um fato. Mas além desses efeitos subjetivos, relativos, ele tem valor? Creio que sim, tanto pelo uso da técnica cinematográfica quanto pelo desenvolvimento da premissa.
Personalidade Fragmentada
Logo nas primeiras cenas, as escolhas visuais do diretor indicam a tensão paranoica em que Nina viverá e a fragmentação de sua personalidade. A câmera, aparentemente controlada na mão, a segue trêmula, por trás, como se a perseguisse, como se ela fosse seguida pelo olhar de alguém que desconhecemos. Mas ninguém a segue. Outro recurso provavelmente usado para efeito paralelo é a frequente presença de espelhos nos cenários. Quando Nina está no camarim com as outras bailarinas, por exemplo, ela é retratada apenas pelo seu reflexo ― e não pelo que seria sua imagem “real”.
Claro que esse segundo recurso parece de menos valor ― espelhos para representar a dupla personalidade são usados até em Homem-Aranha. Mas quando Aronofsky faz uso deste tipo de atrativo, ele o faz com delicadeza. Os espelhos dão a sugestão de loucura, mas jamais se vê Nina má e Nina boa conversando entre si, uma real e frágil, outra no vidro e feroz. É o caso dos efeitos especiais que simulam a transformação dela em cisne monstruoso ― são poucos trechos, não há vista direta do que seria esse monstro, só o uso sutil. Retorno também à tese anterior: os clichês indicam o caminho. Por tantos usarem espelhos com esse objetivo, nós podemos supor sem demora que aqui ocorra o mesmo.
É dentro dessa estrutura de sugestão que a premissa que destaquei ― o concílio entre faces distintas de uma personalidade ― se desenvolve. O diretor exige da garota que seja menos correta em seus passos, que abandone a técnica. Essa é outra complicação: bailarina feita de técnica e precisão, Nina só pode procurar pela habilidade a se adquirir quando se pede a ela que se deixe levar. Regras aprendidas, regras cheias de lucros, como abandonar as regras? Acresça a isso a pressão para que ela seja, além da personagem, outra pessoa ― sensual na vida como devia ser na atuação. “Quando você quer viver, como você começa, aonde você vai, quem você precisa conhecer?” ― como se tornar outra pessoa? Ou ainda: há em nós outra pessoa que poderia se desenvolver sob as condições acertadas?
A mediação entre razão e sensação, ordem e caos, técnica e inspiração parece ser feita pela loucura. O peso da necessidade de adequação parece gerar a fantasia que adéqua o mundo às histórias que se esperam ― sejam boas ou ruins. No limite, dados os picos alucinatórios a que Nina chega, nada no filme pode ser estimado real sem dúvida. O quanto Nina criou?
Perfeito ao ponto do mórbido
A bailarina se autodestrói no processo de criação de sua personagem. Quando salta à morte como rainha cisne, salta à morte como Nina ― e nesse momento sua atuação é perfeita pelo sentimento, pelo modo como deixou o caos lhe conduzir; e também é perfeita pela técnica, pela reprodução precisa do gesto: havia nela, de fato, o desespero do sonho perdido, que é o cerne de sentido da peça de Tchaikovsky, segundo o próprio filme nos diz quando mostra o ensaio da cena do suicídio.
Este é o último elemento que quero destacar: o drama humano contido no símbolo, poético apenas em O Lago dos Cisnes, é posto à mostra em Cisne Negro. É esta dor e essa perdição que existe no original, mas seríamos capazes de senti-la? Talvez seja este o potencial mais valoroso da produção de Aronofsky: o sugerir que estamos, como Nina, alijados do sentido intenso da arte, que precisa do envolvimento, da aproximação deliberada: para chegar a ele, é necessário deixar que nos transforme.