Explodir a questão: provocações a Charles Feitosa a partir do seu “Transversões”

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Qual a sua transversão dos fatos? – não seria essa questão o vetor de toda pergunta filosófica? Ao menos, ela dá o tom da entrevista a seguir, realizada com o filósofo Charles Feitosa, e quer transmitir um pouco do espírito de Transversões, obra que o professor e pesquisador lançou em 2023. A partir desse livro – que reúne textos sobre os conceitos de filosofia pop (vertente filosófica da qual Charles é um dos pioneiros no Brasil) e de pedagogia pop, assim como sobre niilismo, pós-verdade, viagem, surf, zumbis, autismo e cinema – propomos ao autor uma série de provocações, esticando as ideias de Transversões na direção de outros inventos e debates contemporâneos. O resultado desse desafio é este bate-bola em torno da filosofia como múmia ou série de TV, da metafísica do amor, da identidade brasileira, da ciência atacada pelo negacionismo e presa da própria arrogância, da fertilidade do ensino e dos percalços de um brasileiro que não sabia dançar lambada.

Pós-doutor, doutor, mestre e graduado em Filosofia, Charles é coordenador do Laboratório de Estudos em Filosofia Pop (Pop-Lab) e do bacharelado em Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde leciona. Mobiliza na sua pesquisa filósofos como Hegel, Heidegger, Nietzsche, Derrida; interessa-se pelos temas do corpo, da performance, da cultura brasileira e da imagem, preterida por certa tradição centrada no conceito. Entre outras publicações, é autor de Explicando a Filosofia com Arte (2004), prêmio Jabuti de 2005 na categoria Didático ou paradidático do ensino fundamental e médio e futuro programa de TV.

A filosofia pop empreendida por Charles é desenvolvida a partir de uma ideia de Deleuze, filósofo que, como ele lembra nessa entrevista, sugeriu que a prática filosófica podia ser como um show de rock. Há outras elaborações desse termo: Marcia Tiburi, por exemplo, redigiu um “Manifesto em 16 Teses” sobre o conceito. No entendimento do autor de Transversões, a filosofia pop consiste no diálogo com a cultura de seu tempo e na superação de binarismos: em vez de se manter nas versõesinversões – alternâncias entre dois pólos (belo e feio, erudito e popular etc.), seja se atendo ao “positivo”, seja se aliando ao “negativo” –, transverter os debates. Vai nesse sentido também uma nova proposta sua, a pedagogia pop, que é descrita no livro como “a potência de fazer e ensinar qualquer ciência ou arte de modo leve e ao mesmo tempo rigoroso”.

De fato, Transversões parece transverter o próprio conceito de filosofia pop. Ao longo do livro, sentimos que é um conceito em movimento – pode, para além de Deleuze, ser remontado a diversos outros momentos da história da filosofia; tem manifestações múltiplas na atualidade, sem ser “marca registrada” de ninguém; e está aberto a novas implementações. Um exemplo de como isso se dá é que Charles tanto se inspira na rebeldia da pop art dos 1960 quanto encontra caminhos possíveis noutros sentidos dessa palavrinha tão sonora: por exemplo, de to pop – “explodir”, em inglês – e da expressão to pop the question (“explodir a questão”), extrai uma tarefa à filosofia: desmontar o constituído, construir de outro jeito. Pensar de novo, pensar com insolência.

No livro, você diz

(…) talvez a filosofia pop hoje não possa também retornar aos moldes do pop I, dos anos sessenta, uma época de obstinada reação às matizes culturais estabelecidas. Talvez seja necessário agora inventar o pop III ou o pop IV (já que “pop3” é o nome de um protocolo de trocas de arquivos na internet).

Fico pensando no sentido mais corrente de “pop” hoje, o da cultura pop, com seus filmes, videogames, séries. O que seria uma filosofia pop nesse sentido? Produziria uma filosofia com formato de série (Kant, nesse sentido, um autor de trilogias antes de Tolkien)? Seria uma filosofia capaz de ter um universo expandido – ou, ainda, um multiverso? Proporia essa filosofia um além do Super-Homem (e dos Vingadores)?

Seria interessante, sim, perguntar filosoficamente o que está por trás da moda dos filmes de super-heróis e do tema do “multiverso”. Agora, Deleuze já dizia que uma aula de filosofia pode ser um pouco como um concerto de rock, por que não poderia ser também como uma série da Netflix (vide Merlí ou Rita)? Aproveito a deixa para anunciar que até o final do ano deve estrear na TV Brasil uma série audiovisual baseada no meu livro Explicando a filosofia com arte, dirigida pelo premiadíssimo cineasta niteroiense Eduardo Nunes. Deleuze dizia também em Diferença e Repetição (1968) que: “A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema”. Parece que a filosofia passou muito tempo a reboque das ciências, seja se arrogando desde a antiguidade clássica o título de “ciência primeira”, seja se contentando a partir da modernidade com o papel secundário de uma mera “teoria do conhecimento”. O filósofo, quando se reduz ao campo da epistemologia, lembra muito o personagem de um quadro de humor do Agildo Ribeiro nos anos 1980. No programa Planeta dos Homens, Agildo encenava um professor de mitologia grega, que fazia preleções sobre cultura clássica, mas se distraia com frequência. Todas as vezes em que começava a perder o foco, seu mordomo tocava uma campainha para que ele retomasse o discurso correto. “Para com essa campainha, sua múmia paralítica”, berrava ao funcionário, vivido pelo ator Pedro Farah. Quem não conhece, pode dar uma conferida aqui. Parece que parte da filosofia virou mesmo uma espécie de “múmia” ao se sujeitar ao papel de mero serviçal do conhecimento, de ficar constantemente lembrando ao cientista de que não pode se desviar do caminho da racionalidade. Deleuze, ao contrário, sugere que a filosofia pode assumir suas próprias dimensões criativas, fazendo parceria com as artes, promovendo assim uma renovação tanto de si mesma como das próprias artes. A filosofia é um subgênero da literatura, é capaz de promover mais e melhores experimentações com a linguagem.  É necessário, por exemplo, se perguntar se a sala de aula, o texto linear, as aulas expositivas, as longas palestras em congressos, são ainda os formatos mais adequados para se fazer filosofia no século XXI. Eu, pessoalmente prefiro a parceria com as artes da performance, pois elas intimam a filosofia a ter força para suportar os paradoxos e as ambiguidades do corpo e da existência. Não se abandona o rigor, mas sim a excessiva formalidade.

Você propõe como maneira de entrar em contato com a filosofia “pesquisar as letras música de sucesso no Brasil e no mundo, da década de cinquenta aos dias de hoje, buscando identificar nelas os elementos metafísica tradicional do amor”. Qual seria a metafísica do amor hoje? O que podemos extrair nesse sentido do sertanejo universitário, do funk ou de outros gêneros populares no Brasil de agora?

A metafisica do amor não aparece de maneira explícita em nenhum post do Facebook ou do Twitter, mas rege de forma não tematizada boa parte dos nossos discursos e práticas sobre o tema.  A crença em alma gêmea, amor eterno, amor além da morte etc. não é uma exclusividade das letras do sertanejo universitário, mas também da bossa nova, do rock, do blues e de boa parte das óperas (vide Tannhäuser, do Wagner). Minha questão com o tema aqui não é estética, mas terapêutica. Acredito que boa parte das assim chamadas “sofrências do amor” vêm da crença em ideais impossíveis de serem alcançados. Como eu disse em meu livro Explicando a Filosofia com Arte (2004): O amor entre seres finitos também só pode ser finito também, quer dizer, temporário, plural instável e imprevisível. Obviamente não nunca estaremos completamente preparados para lidar com as ambiguidades do amor e do desejo. Em tal contexto não é de se admirar que as reclamações inspiradas a partir de Bauman, a de que “ninguém quer nada sério”, que as relações estão demasiadamente “líquidas”, estejam tão na moda. De fato, o advento das redes sociais parece contribuir para uma banalização, através da quantidade, dos encontros e desencontros. Mas isso não explica tudo. Penso que é importante se perguntar também se não persiste um antigo ressentimento contra a temporalidade permeando essas críticas à suposta “modernidade líquida”. Desde o primeiro momento que os seres humanos passaram a existir vieram no pacote também as dúvidas, os conflitos, as rejeições, os ghostings, as dores de cotovelo, enfim, as assimetrias dos afetos e de suas intensidades. Interrogar a “metafísica do amor” pode até não resolver, mas certamente contribui para reavaliar cobranças e expectativas talvez inadequadas em relação aos modos como os seres humanos se relacionam.

O livro instrui a separar o joio do trigo, isto é, o urgente do essencial. Você critica uma filosofia que não consegue ser extemporânea: “A filosofia hoje em dia procura atender às exigências da época, do momento. É moda falar de ética, de clonagem, de corrupção dos valores”. Como você classificaria um tema bem da moda, o da inteligência artificial? Pode ser só urgente – é imposto pelo avanço técnico e pela vontade comercial – ou pode ser essencial – toca na concepção do que é humano, do que é a criatividade, de como seremos afetados por isso no futuro.

Uma outra passagem do livro que se inscreve nesse assunto é: “As leis de copyright precisam, portanto, ser reescritas a partir de uma desmistificação filosófica da suposta autoridade do autor das obras”. A IA também quer matar de novo o autor.

Acredito que essa distinção entre questões urgentes e essenciais precisa sempre e a cada vez ser reavaliada. Na época (2001) eu queria fazer uma distinção entre assuntos que estavam na pauta do dia, mas que nem sempre eram os mais importantes. Hoje eu diria que a diferença está mais na maneira da abordagem, pois talvez não haja nenhum problema que seja “em si” apenas da moda ou, ao contrário, fundamental. Assim, a preservação do meio ambiente é urgente e também essencial. O aspecto mais urgente é a iminência de um cataclismo irreversível, para isso precisamos diminuir o consumo, reciclar o lixo, evitar desperdícios. O aspecto mais fundamental desse problema é a contribuição que a filosofia (e as humanidades em geral) podem fazer, algo que nem sempre a gente vê na midia, nem nos alertas dos cientistas, nem nas pautas dos ativistas. É preciso rever nossa concepção de natureza enquanto algo oposto, inferior e sempre disponível ao ser humano. Sem uma ontologia modificada da natureza, a ecologia poderá talvez amenizar alguns dos problemas ambientais mais iminentes, mas eles persistirão em formas cada vez mais agudas. Algo similar se passa em relação à questão das drogas, lícitas ou ilícitas. Trata-se de um problema urgente, que é tratado em abordagem médica, política, econômica e até religiosa. A filosofia pode trazer outra perspectiva, que eu chamaria aqui de fundamental, a saber, como as drogas atuam nas difíceis relações entre o ser humano e o real? Por que o ser humano necessita tanto de se distanciar do mundo a sua volta? Por fim, a questão da inteligência artificial tem também uma dimensão urgente e aspectos essenciais. Esse tema me interessa muito no momento, na medida em que estou envolvido com a consolidação da área transdisciplinar de Humanidades Digitais no Brasil (a esse propósito, confira o site do HDRIO23). Precisamos aprender a usar de forma inteligente a inteligência artificial enquanto ferramenta de trabalho intelectual e ao mesmo tempo perguntar se já é necessário escrever uma nova crítica, a saber, a “crítica da razão artificial”, capaz de estabelecer limites às lógicas operatórias das máquinas.

Você elabora sobre essa citação do filósofo Vilém Flusser:

O brasileiro é democrático existencialmente”, afirma ele, com certo orgulho. A despeito das diferenças e injustiças, predomina em diversos setores do país uma relação “cordial” e “amável” com o próximo. Flusser arrisca até uma genealogia dessa solidariedade: os brasileiros gastam tanta energia contra a natureza que falta energia pra ter ódio um dos outros; surge, então, uma solidariedade espontânea, um aspecto de grande vitalidade, pois todo homem é aliado na luta contra a natureza (…).

Essa imagem do brasileiro sem tempo para o ódio parece ter ficado obsoleta: o ódio tem se organizado no brasileiro e por pouco não deixamos de ser democráticos até institucionalmente. Como você, diante dos últimos anos no Brasil, atualizaria esse diagnóstico de Flusser? É possível definir o que é, como é, o brasileiro?

Não, não é possível definir o que é, nem como é, o brasileiro. Mas é nossa tarefa, não apenas da filosofia, mas de todos os cidadãos, acadêmicos ou não, tentar compreender como vimos nos tornando o que somos e ainda o que podemos e queremos ser. O livro de Flusser é datado, foi escrito na década de 1970, ainda sob os ecos da vitória do futebol da seleção canarinho, mas também sob a égide da ditadura militar, que inclusive obrigou Flusser a deixar o país e voltar à Europa. Fenomenologia do Brasileiro é um livro marcado pelo luto por esse segundo exílio (o primeiro tinha sido ser forçado a deixar a terra natal por volta dos vinte anos de idade por conta da invasão nazista em Praga). Apesar da nostalgia, Flusser não cai em um otimismo ufanista. Ele percebe muitas potencialidades na cultura brasileira, mas sabe também que tudo vai depender das escolhas que seriam feitas daí para frente. Ele foi atento à flagrante injustiça social do nosso país, assim como aos sinais de ódio e violência que já apareciam por toda parte. Talvez, diante do cenário político recente, ele seria menos empolgado do que foi na década de 1970. Importante é perceber que o ódio e a violência  que emergiram nos últimos anos não vieram do nada, fazem parte da nossa história, ainda que escamoteada, dissimulada, invisibilizada. Torço para que a crise democrática pela qual o país passou (cuja ameaça ainda não está totalmente afastada), sirva ao menos para que amadureçamos como sociedade e percamos aquela ingenuidade alienada de que somos hegemonicamente um povo “cordial”. Enfim, o ódio saiu do armário, mas sempre esteve lá.  Por outro lado, o bom humor, a criatividade (na forma do jeitinho e da gambiarra), a solidariedade continua persisistindo e resistindo, possibilitando o surgimento constante de outras formas de existência. Não estamos salvos, mas também não estamos completamente perdidos. É preciso estar atento e forte, como dizia a canção.

Outra passagem com ressonâncias muito contemporâneas é essa:

Quando há verdades em demasia, quando a verdade vale mais do que deveria, o perigo não é mais apenas, como na época do pós-guerra de Arendt, a descrença generalizada na realidade. O perigo do excesso de verdades agora é, ao contrário, a revalorização reativa, nostálgica e muitas vezes enceguecida dos fatos, como se eles existissem em algum lugar, objetiva e efetivamente, e pudessem funcionar como uma pedra de toque nas nossas falas.

Isso me lembra a polêmica em torno do livro Que Bobagem – pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, de Natalia Pasternak, e Carlos Orsi, que, por exemplo, classifica a psicanálise como pseudociência e, segundo alguns, pode por saberes tradicionais na berlinda. Há no livro, ou na visão de mundo que ele representa, de um ideal científico, essa “revalorização enceguecida dos fatos”?

Sim, o caso da Pasternak é sintomático, alguém que foi muito importante durante o período de quarentena, reforçando a importância das vacinas e do isolamento social, mas que agora extrapola ao usar as evidências científicas contemporâneas como critério absoluto para julgar e condenar diferentes práticas terapêuticas, algumas talvez de procedência duvidosa, mas outras embasadas em tradições milenares, que merecem no mínimo o benefício da dúvida e a curiosidade por estudá-las mais ao fundo.

É um momento difícil para a filosofia, pois de um lado, temos que defender a ciências contra o negacionismo, que pode vir tanto da ignorância como de uma vontade política de tomar o poder. Por outro lado, é preciso manter a atitude constante de crítica e suspeita contra os saberes hegemônicos, até mesmo às vezes contra a ciência. Embora a ciência venha se mostrando como o modo mais eficaz de melhorar a vida humana, comete também muitos erros, alguns de consequências catastróficas.

O filósofo austríaco Paul Feyerabend era uma dessas vozes dissonantes, alguém que, ao contrário do mordomo do Agildo Ribeiro, tocava a sinetinha para lembrar aos cientistas que eles não são os donos absolutos da verdade dos fatos.

Feyerabend nos lembra constantemente que a ciência não é neutra, nem perfeita. Está atravessada de interesses políticos e econômicos. Tem inclusive uma história de parcerias com saberes que hoje seriam condenados como pseudociências, tais como a alquimia e a astrologia.

Provavelmente um dos fatores que desencadeiam o negacionismo científico venha justamente de uma reação contra a atitude arrogante de certos setores da ciência de se colocar como o único saber legítimo.

Toda vez que alguém apela apenas às próprias certezas, tal como nas fake news, ou, no extremo oposto, apenas a fatos, supostamente universalmente aceitos, estamos igualmente mais próximos do abismo. Precisamos escapar dessas duas alternativas, precisamos de outras filosofias.

Você afirma que “qualquer professor de filosofia tem, por sua vez, histórias para contar, histórias de resistências, desencontros, impotência”. Tenho curiosidade sobre o avesso disso: que histórias de aberturas, bons encontros e devires você poderia contar da sua trajetória de professor? Que experiências você teve que te mostraram os potenciais da pedagogia pop, da transdisciplinaridade, da filosofia no ensino?

Tenho diversas histórias emocionantes na memória, de encontros e desencontros, nesses mais de 20 anos de exercício da filosofia e da pedagogia pop. Uma delas remonta ao primeiro curso que dei como professor universitário, na volta ao Brasil após doutoramento na Alemanha. A disciplina era de Estética, primeiro período do IFCS-UFRJ [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro], no ano de 1996. Muitos professores que hoje atuam na área da filosofia se lembram com carinho de terem participado dessa disciplina. Não era apenas meu primeiro curso na universidade como professor, mas também a primeira vez que eu abordava questões ligadas às artes, pois até então eu tinha me ocupado muito mais com questões existenciais na história da filosofia, tais como o amor e a morte. Lembro-me que estávamos lendo uma passagem das Lições em Filosofia da Arte de Hegel, em que ele dizia: “A arte distraindo vivifica a árida secura sem luz do conceito”. Associei a passagem ao romance A Náusea, de Sartre, em que o personagem principal sofria de forma avalassadora com a absurdidade da existência, mas tinha momentos de alívio toda vez que ouvia uma música de jazz na voz de uma cantora negra. No texto não havia menção a nomes, só o refrão da música: “Some of days, you’ll miss me, honey”. Comentei distraidamente com a turma que a música mencionada por Roquentin parecia existir mesmo, provavelmente Sartre teria ouvido em Paris nos anos 1920, mas eu mesmo após anos procurando ainda não tinha encontrado. É bom lembrar que naquela época não tínhamos Google, Spotify ou Youtube. Para minha surpresa na semana seguinte uma aluna aparece na aula com um imenso micro system, contando que tinha se identificado com o personagem de Sartre e teria partido para a Modern Sound (lendária loja de cds em Copabana), tendo não apenas localizado a cantora como conseguido encomendar um CD com a gravação original. Quando a voz da Ethel Waters ecoou pela sala cantando a música Some of These Days fui tomado de uma intensa alegria, pois são incrivelmente inesperados os efeitos quando professores jogam sementes de conhecimento em terrenos férteis. Quem quiser conferir essa bela canção de blues pode acessá-la aqui.

No contexto de valorizar os percursos pessoais, as histórias de vida entrelaçadas com o pensamento, o corpo no corpus, há no livro esta citação de Nietzsche: “Com três anedotas é possível dar a imagem de um homem”. Poderia nos contar três anedotas sobre Charles Feitosa, que nos deem uma imagem sua e de sua filosofia?

No meu livro há várias anedotas, no sentido de “histórias interessantes que não costumam ser publicadas”, mas aproveito a oportunidade para contar ao menos uma que não está lá. Quando desembarquei pela primeira vez na Alemanha em abril de 1990 tinha 24 anos. Vinha fazer um doutorado integral em filosofia, com bolsa do DAAD [sigla em alemão do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico], na Universidade de Freiburg i.B., uma pequena e bela cidade próxima à Floresta Negra. Tive muita dificuldade com o idioma, depois com o clima, com a comida, com os relacionamentos. Por outro lado, a biblioteca da universidade, do tamanho de vários campos de futebol empilhados, constituía o sonho de todo pesquisador; e, para melhorar, a aparente frieza dos alemães transformou-se rapidamente em amizades profundas, preservadas para o resto da vida.

Pois uma coisa estranha me aconteceu. Parece que existe uma relação imediata entre o modo como um grupo movimenta ritmicamente seus corpos e a sua própria definição enquanto comunidade. Há relatos de que em diferentes tribos africanas é costume travar conhecimento com a pergunta “o que danças?” em vez de “quem és?” ou “de onde vens?”. Na época em que cheguei na Alemanha no início dos anos 1990 fazia muito sucesso uma dança tipicamente brasileira. Ao descobrirem que eu era do Rio de Janeiro logo me pediam para mostrar uns passos da tal dança. Quando eu perguntava se era samba que eles queriam, eles respondiam: “Samba não, lambada!”. Eu nunca tinha ouvido falar antes de lambada, achei que eles estavam confundindo com alguma variação da salsa ou do tango. Aos poucos fui me inteirando da história: a lambada tinha sido exportada do norte do Brasil direto para as danceterias da Europa, sem passar pelos centros, normalmente ditadores da moda, de São Paulo e Rio de Janeiro. Somente uns meses depois, vinda da Europa, é que a lambada começaria a se tornar uma febre no Brasil. Eu me encontrava exatamente no hiato da trajetória de sucesso desse gênero musical. Logo percebi que todo mundo só falava disso e que os brasileiros que sabiam dançar lambada tinham uma vida social muito mais intensa que a minha, conseguiam com muita facilidade um quarto para morar em república ou uma turma para treinar o idioma.

Depois de recusar envergonhadamente várias oportunidades de exibir a tal dança do meu próprio país, sentia como se minha falta de brasilidade estivesse sendo continuamente exposta em praça pública. Por isso tomei uma decisão muito importante: tinha que aprender lambada. Como eu era absolutamente inapto para a dança em geral pensei que só mesmo me matriculando em um curso regular. O problema é que o único curso de lambada da cidade era ministrado por uma professora alemã! Quando cheguei lá, logo na primeira hora, aquela em que todo mundo diz de onde é e porque estava ali, me bateu uma sensação terrível de desconforto. Na roda inicial procurei em minha mente o nome de algum país em que ninguém soubesse como as pessoas eram, que língua falavam ou como bailavam. No desespero eu disse: “Sou do Yemen do Norte!!”. Ninguém estranhou, foi um alívio.

Não aprendi lambada direito, mas pelo menos perdi para sempre o medo de dançar, algo pelo qual sou eternamente grato à minha professora germânica. Em tempo, quando voltei ao Brasil passei a pesquisar, orientar e colaborar nos processos criativos de bailarinos e coreógrafos brasileiros de renome internacional, tais como Micheline Torres, Bruno Beltrão, Maria Alice Poppe, Dani Lima e Lia Rodrigues. Paradoxalmente, aprendi na Alemanha muito sobre o Brasil e sobre mim mesmo e, principalmente, acho que aprendi a não ter medo de aceitar, enquanto filósofo, o convite à dança.

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