[texto originalmente publicado no site do Itaú Cultural, dentro de Narrativas, série que agrega textos literários inspirados por obras de artes visuais. O poema em prosa “Narciso” foi criado a partir da série homônima de Hudinilson Jr., multiartista que, nela, investiga o próprio corpo]
Meu obsceno ferido, a cutícula inchada, no canto da unha sangue seco. Quero apaixonar-me por isso. Roça o calombinho, rogo essa carícia a ti, espelho; repara na rigidez quente e na resistência nova desta região da carne, nota que a maciez da doença é outra. Eu quem toca, eu sendo tocado: não é possível ser ambos ao mesmo tempo. Eu é um pêndulo. Eu quem toca varia se está do meio, mindinho, indicador, polegar ou anelar. Eu sendo tocado, gradações da dor: curiosidade, audácia ou berro. Quero apaixonar-me por essa aquosidade – por mim? Onde eu? Não nos quatro dedos entremeados nos cabelos arrastando-se as falanges pelo couro até preencher os interstícios com mechas – vês que o calor é intenso próximo à raiz e que cede milímetro a milímetro, da troposfera à exosfera? Não nos globos oculares incomodados mesmo por leves pressões nas pálpebras que no lado de dentro somam novas escuridões ao negrume – pinça delicado tal pele, ouve a descola, um frescor invade, devolve-a, ouve o grude. Não nos orifícios que exploro com o tato: as narinas com suas diferentes provisões de umidade (por que só sentimos o cheiro do ranho se o tiramos do nariz?), sua ardência quando se toca a cartilagem, seus pelinhos um tanto difíceis de tanger; os ouvidos tapados que nos alojam em um ronco contínuo, ruído branco de 396 hertz (ou quase), cabine de avião (há algo de voo no corpo contemplado), frequência moderadora de chacras (há algo de esquiva do ouriço no corpo: concentra-se em si e zela); a boca, tão multifária – desliza os apontadores por toda a gengiva, esfrega-os pela arcada (na frente, atrás, embaixo), faz cócegas no céu, alicata a língua com recurso ao civilizatório opositor, estuda de lado a lado a tua mucosa, avança em direção à amígdala, acusa a apreensão da garganta (o vômito é solícito, como o alívio e o álcool educam), mas guarda o distúrbio para depois. Onde eu? Aí é eu, pingando, aspergindo, escorrendo, alagando, encharcando. Aí me reduz a eco. Aí me conquista e afoga. Ou eu é aqui? Este rio diante de ti, espelho: tua sereia, te reflito; a você, meu Ulisses, e vice-versa.