[texto publicado originalmente no Digestivo Cultural]
Estou na Universidade de São Paulo por cerca das 22h do dia 27 de outubro; vejo, do alto, a multidão aglomerada ao redor das viaturas. Em frente à polícia, a bandeira com a inscrição “Fora Rodas! Fora PM!” está erguida. Algo acontece, os policiais aparentemente tentam por manifestantes dentro de um carro. Na tentativa de fechar a porta, ela é quebrada. O conflito se inicia no instante seguinte. Cinco segundos de pancadaria e explode a primeira bomba de efeito moral – a fumaça muito branca, sinuosa sobre a faísca vermelha do invólucro. Após o primeiro tiro de espingarda, de súbito a massa se desfaz, se desagrega a princípio a partir da ponta e depois de forma completa, os estudantes correndo ao longo da avenida e do espaço que separa os prédios da FFLCH. “Filhos da puta! Filhos da puta! Estão atirando!”, gritava uma menina perto de mim. No centro da rua, um policial sozinho dispara uma, duas vezes, limpa o caminho para a partida das viaturas, que avançam violentamente. Enfim, silêncio.
As raízes do confronto vão além da versão mais simplificada, que, se por um lado descreve o estopim da manifestação, por outro não deixa perceber os múltiplos fatores em interação no acontecimento. Essa versão simples coloca, como motivo único, a tentativa, pela polícia militar, de encaminhar ao distrito três alunos que estariam fumando maconha. O protesto de um grupo de alunos impediu a ação dos soldados, que chamaram reforços. Logo, no vão do prédio da História e na entrada da Filosofia/Sociais, uma aglomeração maior se formou. Os militares estacionaram cerca de dez carros entre as duas faculdades. Quando cheguei à USP era esse o cenário, a luz vermelha das sirenes se via de longe. Daí até o conflito final, foram pelo menos três horas – tempo suficiente para a manifestação se descolar da razão inicial e agregar questões como: a presença da PM no campus é legítima? O modo de abordagem é justificável? Segurança significa apenas intensificação de ronda policial?
Não se tratava de um debate acadêmico, porém, e tais perguntas se reduziram à forma que a política terra-a-terra parece exigir. Houve diálogo e provocação entre estudantes e policiais, houve palavras de ordem, ação física intempestiva e negociação. O ambiente vacilava entre elétrico e moroso. Conforme desço a rua em direção à sala, observo os policiais em fileira, um deles me encara com empáfia. Escuto outro dizer: “O problema desses alunos é que tem conversa demais”. Na cadeira, em meio à aula, é possível ver as sirenes lá fora. Não demora muito e os representantes do centro acadêmico de Filosofia entram, informam sobre o caso e pedem nossa presença. A adesão é pequena: no momento da exposição, ninguém se mexe, depois, um ou dois alunos deixam a sala. Isto, é claro, no meu campo de visão. Imagino que a participação tenha sido mais recalcitrante do que manchetes permitem ver. A indiferença de muitos desenha os limites do que seja o movimento estudantil.
“Companheiros!”, grita, sobre os ombros de colegas, um aluno, figura costumeira do debate universitário. O grupo em torno o repete, para que a mensagem chegue longe: companheiros! E ele continua: “Os diretores dessa universidade!” – os diretores dessa universidade! – “se reuniram!” – se reuniram! – “para planejar a demissão dos dirigentes do Sintusp!”. A sigla é do Sindicato de Trabalhadores da USP. Uma menina próxima exclama um “Aaaah!” longo, em desprezo. Pouco depois, a multidão decide entrar no prédio da Filosofia/Sociais, de modo a chamar a atenção dos demais. Avançam, em cordão, pelos corredores. Em certo ponto, soldados passam a acompanhá-los e entram também no prédio. A corrente se inverte e os policiais são expulsos dali para fora, a grito e empurrão. Vejo o rosto de um deles, eu o olho nos olhos sem que me veja. Não é fúria o que percebo, mas desamparo e confusão.
Depois, observo alguns alunos conversarem com os policiais. “Vocês inventam leis que não existem. Esse é um lugar público, a polícia sempre pôde entrar”. “Maconha atualmente é ilegal, quando não for é outra história. Ouvi um professor dizer que aqui isso era natural. Isso é loucura“. Uma aluna atenta para as armas que os policiais trazem e a intimidação que causam. “A arma é o meu instrumento de trabalho”, respondem. Outro aponta o caráter subjetivo e aleatório das abordagens. Um capitão com a voz rouca e cicatriz no pescoço diz: “O policial segue a experiência de vida. Um exemplo choco: se ele foi roubado por um cara com uma camisa do Fluminense, ele vai abordar um sujeito assim na sua”. Ao lado do capitão, um militar de bigode tenta ser didático: “Existe a suspeita, abordamos. Não tem nada, muito bem, obrigado”. O aluno parece implicar que a abordagem nem mesmo poderia ocorrer. Um dos policiais próximos contém o riso.
Uma das afirmações do movimento contrário à presença da Polícia é que as abordagens são um instrumento de repressão (como se lê no manifesto da ocupação da Administração da FFLCH, de que trataremos). O Jornal do Campus, por exemplo, noticiou: “Aluno da ECA é abordado por ‘olhar feio’ para policiais militares“. Em um âmbito maior, crítica similar se lê em “Abordados nas batidas criticam truculência policial“, do Estadão. A problemática está presente também no pensamento da própria Polícia Militar, como se vê nessa entrevista em que um oficial com 20 anos de carreira, o Major Plauto, do Ceará, ressalta que “a formação do policial é para a guerra”, inadequada para situações sociais que demandem flexibilidade. Limites das abordagens estão informados no folheto “A Polícia me Parou. E Agora?“. Mais informações (conceitos, práticas) estão neste estudo. Até outubro, foram feitas 9.207.504 abordagens do tipo no estado de São Paulo, segundo a Secretaria de Segurança Pública.
“Os policiais não tem treinamento para lidar com manifestações universitárias”, afirmou Jeremias de Oliveira, fundador da Associação dos Docentes da USP, “isso [se referindo ao tumulto ao redor] é pedagógico pra eles”. Um dos alunos o fez notar que a abordagem não deveria ser diferente só na USP, mas em todo lugar. Oliveira também criticou o reitor João Grandino Rodas: “É incrível como ele desconhece o que é a polícia, o que são estudantes e o que é a Guarda Universitária”. Após o conflito, o reitor defendeu a presença da PM, que seria uma resposta à insegurança na universidade. Essa medida, em seu caráter funcional, é questionada pela comunidade uspiana. O “abandono” da Guarda Universitária (entendido até como ação política, já que criaria a situação para que a PM fosse posta como solução), a dispersão geográfica dos prédios, a iluminação insuficiente, entre outros temas, são colocados em destaque. O Estadão também discutiu: “A PM deve entrar no Campus da USP?“.
Em dado momento, os policiais começam uma movimentação. Primeiro, formam um fileira de contenção pouco a frente da massa. Esses policiais logo são confrontados por um cordão de gente, que os empurra para trás. Deixo de prestar atenção por alguns momentos. O lugar onde permaneço é estranhamente calmo. A manifestação segue à frente, junto a uma viatura em que estaria um delegado. A poucos metros de mim, vejo um policial sacudir um tubo de gás de pimenta. Sacode, toma distância, calcula, sacode de novo. Atravesso a rua e subo por umas escadas que levam a outra instalação da USP.
Assembleia e Ocupação
Com o gás de pimenta ardendo nos olhos, nariz e garganta, me dirijo ao vão da História, em que seria realizada uma assembleia. Vou ao banheiro para lavar o rosto e limpar a garganta. Há manchas de sangue no chão e na pia (é curioso que o governador de São Paulo Geraldo Alckmin tenha dito que não havia estudantes feridos). Quando retorno, cerca de 500 alunos estão no espaço, sentados no chão, nas rampas, nos andares superiores. Contra o burburinho incessante, o som de um microfone ruim nos informa que há duas propostas: a primeira, por se realizar uma outra reunião na terça, para deliberação; a segunda, pela imediata ocupação do prédio da Administração da FFLCH.
Tivemos cerca de uma hora de falas em defesa das duas propostas. Ressaltou-se que agir no calor do momento era importante, quando havia a mobilização. Defendeu-se primeiro pegar os alunos feridos e registrar corpo de delito, como provas à opinião pública. Independentes da discussão principal, focos de debate surgem por todo lado: dois ou três debatendo com níveis de agressividade variados e tantos outros observando. Por acaso, me envolvo em um dos debates, do qual participa uma representante do Diretório Central dos Estudantes. Ela está com um hematoma no braço – e a agressão tinha sido de outro aluno, ocorrida quando o trio que ia ser detido pela polícia estava sendo levado para uma sala, onde se reuniria com professores e advogado. Os demais estudantes não queriam que isso acontecesse, o DCE escoltou os três até lá, e esta representante foi pressionada contra a porta. “Uma amiga minha foi ‘enforcada’ por um deles, com o braço assim no pescoço dela”, conta.
A segunda proposta vence: 201 votos contra 192. Começa então a procissão. A bandeira com “Fora Rodas! Fora PM!” é erguida novamente. Alguém dá ritmo à marcha, empunhando um tambor e levando a batida de maracatu. Os estudantes se preparam para a invasão e para um possível conflito: arrancam assentos de bancos de pedra e jogam ao chão uma lixeira do mesmo material. “Barricada! Barricada!” grita um deles. Outro passa mostrando aos amigos um pedaço de pedra com cerca de 20 centímetros de largura e 5 de comprimento. Enfim, chegamos à frente do prédio. Os alunos se aglomeram. De moto, um dos guardas universitários observa de longe. “Já chegou o disco voador!”, diz uma menina, parafraseando um chavão do Chaves. Os manifestantes cobrem os rostos, porque “a Guarda tira fotos”. Por fim, estouram o portão de ferro e entram.
Deixo a manifestação logo após, eram quase 23h30. Indo até o ponto de ônibus, passo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Um grupo de estudantes conversa, o som de música de festa preenche o ambiente. Bebem cerveja e suco de caixinha. Não parecem ter conhecimento algum dos confrontos que tinham ocorrido ali tão perto.