Eu já o tinha visto em frente às catracas; ele emitia a um segurança um discurso exaltado, com onomatopeias e gesticulações, a que o guarda, postura rígida, atenção formal, só assentia com a cabeça às vezes. Como o segurança, era um homem negro. Tinha o cabelo cacheado, não era muito alto, tinha braços fortes até. Quando entrou no metrô, se dirigiu a um passageiro que tinha fones no ouvido, um homem grande, meio gordo, negro também: “Posso falar uma coisa para você?”. O sentado apontou para as orelhas. O de pé insistiu e foi rebatido por um “tô estudando!”, seguido de um gesto de quem fecha questão. O primeiro então resolveu passar pelo menos uma mensagem: “Olha, Jesus te ama, tá!”, ostensivamente, “Jesus te AMA”, agressivo, agitando o indicador, mas não violento.

Sentou um pouco, olhando para a janela, depois parou na nossa frente: “Posso falar uma coisa pra vocês? Desculpa incomodar”. Disse: “Eu não sou nada. Sou morador de rua – vivo aí, nas calçadas – mas acho que Deus me colocou aqui hoje pra falar uma coisa pra vocês: Jesus te ama”. Se eu falasse que sou ateu ele ficaria muito irritado? “Jesus disse para amar o próximo. O próximo”, explicou, mostrando as pessoas no trem com a mão, “é esse aqui do lado, é ele ali. Amar o próximo como você mesmo. Você não se ama? Não ama ela? Então”. Eu fico um tanto triste por quanto a religião o está iludindo, justificando a sua situação talvez. Por outro lado, dá uma anestesia necessária, não dá? E a potência de reclamar de qualquer um irmandade.

“Não tô falando de dar dinheiro”, prossegue, fazendo que não com o dedo em riste, balançando bastante a mão nessa negativa, por um momento olhou para ela como se ela o fizesse sozinha, “mas uma pessoa que tá com fome você não vai dar um prato de comida? Eu dou. Não tô falando de dar dinheiro pra malandro aí. Se uma pessoa tá passando mal, você não ajuda?”. Tinha de dizer algo assim: há certo protocolo da caridade que impõe só dar dinheiro a quem demonstrar não querer dinheiro ou a quem peça irrelevâncias (não é porque cinco centavos servem pra alguma coisa que os pedintes dizem que o aceitam; é para exibir essa disponibilidade sem desejo). Creio que ele queria me induzir a dar alguma moeda. Não ando com dinheiro. Ele não pediu.

Só reforçou sua teologia: “Dízimo não é dar dinheiro. Me diz onde tá na Bíblia que dízimo é dar dinheiro! Fala, pastor!”, intensificando o tom conforme questionava, cabeça baixa, o punho no ar como quem bate um martelo, escandindo a frase seguinte: “Onde que tá na Bíblia que dízimo é dar dinheiro?”. Então ficou em silêncio, inquieto. Dali a pouco, voltou a me chamar (já tinha ido para outro canto): “Ei, irmão. Irmão!”. Olhei. “Eu já dormi em cemitério. Você não sabe o que eu já passei”.

Desceu na estação Tiradentes. Em frente à plataforma vazia do lado oposto, ele me viu observando e se despediu com um joinha e com a mão espalmada. Retribui.

 

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