Alguém enuncia um assunto grave com os meios de expressão dos temas leves.
-
Vidas Novas, Ingo Schulze
Num tom mais ou menos igual ao de me oferecer creme de leite para o café, ela perguntou se nós também votaríamos na Aliança pela Alemanha.
O protagonista escreve sobre uma visita à sua mãe; as páginas anteriores nos indicam a agitação política da Alemanha à época (janeiro de 1990, sob os abalos da queda do Muro de Berlim), o que situa essa pergunta da matriarca ao seu filho e a um amigo sobre se votarão ou não em uma coalizão de direita (que seria a grande vitoriosa nas eleições legislativas de março). Estão à mesa, então a referência ao “creme de leite para o café” mostra como para a mulher não há desnível entre a situação prosaica e o conflito político: passar manteiga no pão, propor um lei ao país compartilham algo.
-
A Dança dos Dragões, George R.R. Martin
— Sua morte foi longa e sofrida, Sor Balon? – perguntou Tyene Sand, em um tom que uma donzela poderia usar para perguntar se seu vestido era bonito.
Tyene Sand se refere à morte de Gregor Clegane, soldado monstruoso e cruel, jurado à rainha, responsável não só pelo óbito do seu pai, Oberyn — em um duelo no qual Clegane lhe enfiou os dedos pelos olhos até o crânio — como pelos assassinatos de outros familiares seus, crianças e recém-nascido inclusive, durante uma guerra. Ela tem, portanto, os motivos todos para o ódio. Mas é um ódio tranquilo — ou, em outras palavras, seu prazer sádico e vingativo possui uma naturalidade. Sua personalidade não está convoluta pela vontade de fazer sofrer; é algo que faz parte dela. Dito ainda de outra forma, “longa e sofrida” aí não são imagens do horror, mas qualidades entre outras, apropriadas ao fim deste homem particular como “bonito” é apropriado ao vestido de um donzela da nobreza.