Dormir com a mulher desconhecida

Na cama, à noite, o personagem recebe uma visita erótica imprevista e que permanece velada.

No geral, parece uma ocorrência particular da fantasia do parceiro sexual que se entrega muito facilmente, que mesmo insiste apesar das recusas do protagonista da vez — estrutura que guia enorme parte dos filmes pornôs. Relevante em cada caso é que a ação central (a transa), parece dessignificada: o que lhe dá corpo são os elementos contextuais em que se inclui.


  • “O Amor Junto ao Trigo”, Confesso que Vivi, Pablo Neruda
p. 24-26 (trad. Olga Savary)

Cheguei ao acampamento dos Hernández antes do meio-dia, descansado e alegre. Minha cavalgada solitária pelos caminhos desertos, o descanso do sono, tudo isso refulgia em minha juventude taciturna.

A debulha do trigo, da aveia, da cevada, se fazia ainda com éguas. Não há nada mais alegre no mundo que ver girar as éguas, trotando ao redor da mó do grão, debaixo do grito instigante dos cavaleiros. Havia um sol esplêndido e o ar era um diamante silvestre que fazia brilhar as montanhas. A debulha é uma festa de ouro. A palha amarela se acumula em montes dourados. Tudo é atividade e movimento: sacos que deslizam e são enchidos, mulheres que cozinham, cavalos que tomam o freio nos dentes, cachorros que ladram, crianças que a cada instante têm que escapar — como se fossem frutos da palha — das patas dos cavalos.

Os Hernández eram um clã singular. Os homens hirsutos e com barba por fazer, em mangas de camisa e revólver no cinto, estavam quase sempre sujos de azeite, de pó de cereal, de barro, ou molhados até os ossos pela chuva. Pais, filhos, sobrinhos, primos, tinham todos a mesma catadura. Permaneciam horas inteiras ocupados debaixo de um motor, em cima de um telhado ou sobre uma máquina de debulhar. Nunca conversavam. Falavam de tudo em tom de brincadeira, a não ser quando brigavam. Para lutar eram que nem trombas-d'água: arrasavam com tudo que tinham pela frente. Eram também os primeiros nos churrascos em pleno campo, no vinho tinto e nas guitarras chorosas. Eram homens da fronteira, a gente de que eu gostava. Eu, estudante e pálido, me sentia diminuído junto daqueles ativos, bárbaros, e eles, não sei por que, me tratavam com certa delicadeza, que em geral não tinha com ninguém.

Depois do assado, das guitarras, do cansaço cegante do sol e do trigo, a gente tinha que se preparar para passar a noite. Os casais e as mulheres sozinhas se acomodavam no andar térreo, dentro do acampamento levantado com tábuas recém-cortadas. Quanto aos rapazes, fomos destinados a dormir no celeiro. O celeiro erguia seu monte de palha e podia alojar um povoado inteiro em sua maciez amarela.

Para mim tudo aquilo era um incômodo inusitado. Não sabia como me esticar. Coloquei cuidadosamente meus sapatos debaixo de uma camada de palha de trigo, a qual deveria servir-me de travesseiro. Tirei a roupa, me cobri com o poncho e me afundei no monte de palha. Fiquei longe de todos os outros que, de imediato e de maneira unânime, trataram de roncar.

Fiquei muito tempo estendido de costas, com os olhos abertos, o rosto e o braços cobertos pelas palhas. A noite era clara, fria e penetrante. Não havia lua mas as estrelas pareciam recém-molhadas pela chuva e, sobre o sono cego de todos os outros, somente para mim cintilavam no regaço do céu. Em seguida dormi. Despertei bruscamente porque alguma coisa se aproximava de mim, um corpo desconhecido se movia debaixo da palha e se acercava do meu. Tive medo. Esse algo se chegava lentamente. Sentia se partirem os talos da palha, afastados pela forma desconhecida que avançava. Todo meu corpo estava alerta, esperando. Devia talvez levantar-me e gritar. Fiquei imóvel. Ouvi uma respiração muito perto de minha cabeça;

Súbito uma mão avançou sobre mim, uma mão grande, calejada, mas mão de mulher. Percorreu-me a fronte, os olhos, todo o rosto com doçura. Depois uma boca ávida se colou à minha e senti, ao longo de todo meu corpo, até os pés, um corpo de mulher que se agarrava comigo.

Pouco a pouco meu temor se mudou em prazer intenso. Minha mão percorreu sua cabeleira com tranças, uma fronte lisa, os olhos de pálpebras fechadas, suaves como amapolas. Minha mão continuou buscando e toquei dois seios grandes e firmes, nádegas amplas e redondas, pernas que me entrelaçavam, e mergulhei os dedos em um púbis como musgo das montanhas. Nem uma palavra saía nem saiu daquela boca desconhecida.

Como é difícil fazer amor sem causar ruído em um monte de palha, compartilhado por mais sete ou oito homens, homens adormecidos que por nada do mundo devem ser despertados. Mas o certo é que tudo se pode fazer, ainda que custe cuidados infinitos. Um pouco mais tarde, também a desconhecida caiu bruscamente adormecida junto de mim e eu, exaltado pela situação, comecei a ficar aterrorizado. Logo amanheceria, pensava, e os primeiros trabalhadores encontrariam a mulher no celeiro, estendida a meu lado. Mas também eu adormeci. Ao despertar estendi a mão sobressaltado e só encontrei um côncavo tênue, sua morna ausência. Depois um pássaro começou a cantar e logo a selva inteira se encheu de gorjeios. Soou o apito de motor e homens e mulheres começaram a transitar e a se atarefarem junto ao celeiro em suas ocupações. O novo dia de debulha se iniciava.

Ao meio-dia almoçávamos reunidos ao redor de compridas mesas. Eu olhava de soslaio enquanto comia, procurando entre as mulheres a que pudesse ter sido a visitante noturna. Mas umas eram velhas demais, outras demasiado magras, muitas eram mocinhas delgadas como sardinha. E eu procurava uma mulher compacta, de bons seios e tranças compridas. De repente entrou uma senhora que trazia um pedaço de assado para o seu marido, um dos Hernández. Esta, sim, podia ser. Ao contemplá-la do outro extremo da mesa, acho que notei naquela bela mulher de grandes tranças um olhar rápido e um sutilíssimo sorriso. E me pareceu que esse sorriso se fazia maior e mais profundo, se abria dentro de meu corpo.

 

À princípio, eu iria citar trechos menores desse capítulo, mas fui percebendo como todos os símbolos colocados imprimem sua marca. A chegada a um acampamento anuncia de entrada o passageiro; o trabalho e a festa da debulha remetem à fertilidade, aos prazeres do corpo (que se apresentam em várias formas: comer, dançar, ouvir música — em perspectiva, deixa aberto o espaço do erógeno), ao pathos. Com a reviravolta final, em que a senhora é assumida como a amante furtiva, fica implícita certa vitória do poeta, frágil e casmurro, sobre a masculinidade viril que ele descreve nos peões. Isso também pode ser visto por outro lado: o ofício do campo, a colheita, o manejo dos animais, o festejo, tudo é espontâneo, tem a marca do natural, do contato direito com as condições da natureza. O escritor vem algo destacado, como a incursão da “civilização” nesse cenário. Assim sendo, todo o conto é a história de uma conversão, em que o narrador é despojado de uma personalidade “poética” e de confortos desnecessários e — na apoteose — da moralidade. Desse ponto de vista, libertação carnavalizante (aliás, na primeiro interpretação, também…).

  • “William Burns”, Chamadas Telefônicas, Roberto Bolaño
p. 109 e p. 111 (trad. Eduardo Brandão)

Era uma época triste da minha vida. O trabalho passava por um mau momento. Eu me entediava soberanamente, eu, que nunca me entendiava antes. Saía com duas mulheres. Disso sim eu me lembro com clareza. Uma era, digamos, já veterana, da minha idade, e a outra quase uma menina. Mas às vezes pareciam duas velhas doentes e cheias de rancor, às vezes pareciam duas meninas que só gostavam de brincar. A diferença de idade não era tão grande para que eu as confundisse com mãe e filha, mas quase. Enfim, são coisas que um homem pode somente supor, nunca se sabe. O caso é que essas mulheres tinham dois cachorros, um grande e outro pequeno. (...)

Um dia, porém, os cachorros se perderam e sai à procura deles. Lembro de ter percorrido, armado apenas com uma lanterna, um bosque que ficava perto, e que espiei nos jardins de casas desabitadas. Não os encontrei em lugar nenhum. Quando voltei para casa as mulheres olharam para mim como se eu fosse responsável pelo desaparecimento dos cachorros. Disseram então um nome, o nome do assassino. Foram elas que o chamaram assim desde o início. Não acreditei nelas, mas ouvi tudo o que tinham a me dizer. As mulheres falaram de amores escolares, problemas econômicos, rancor acumulado. Não entrava na minha cabeça como puderam se relacionar na escola com um mesmo homem, dada a diferença de idade que existia entre elas. Entretanto, não quiseram me dizer mais nada. Naquela noite, apesar das recriminações, uma delas veio ao meu quarto. Não acendeu a luz, eu estava meio adormecido, no fim não soube quem era. Quando acordei, com as primeiras luzes da manhã, estava sozinho.

 

Somam-se nesse trecho nebulosidades. Primeiro, a descrição das mulheres com que o narrador está envolvido parte de uma espécie de oximoro (a jovem e a veterana), que é desdobrado em paradoxos (parecem ambas às vezes velhas e às vezes meninas; a “diferença de idade” não permite confundi-las como mãe e filha — note o quase acrescentando indecisão a essa percepção —, mas seria claramente proibitivo quanto a namorarem o mesmo homem à mesma época). Dessa forma, quando vem a amante à cama, não identificável, para logo cedo ter desaparecido, essa imprecisão e alternância do acontecimento é só mais um dado para um clima de subdeterminação. No entanto, tudo leva a crer que esse ato termina por vincular de uma forma definitiva o protagonista às moças, aos cães perdidos, ao assassino. Toda a vagueza de algum modo o põe em certa direção, sem que passado ou destino sejam claros, sem que as ações tenham base ou mesmo valor, embora tenham consequências. Essa noitada indefinida é Bolaño em uma casca de noz.

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