Em 1943, Antonio Candido, um dos mais importantes críticos literários da história do país, iniciou a publicação de colunas na Folha de S.Paulo. O primeiro artigo, chamado “Ouverture“, fazia uma reflexão sobre o trabalho da crítica, e estabelecia os critérios para a futura atuação do autor naquele espaço. A partir desse texto — extraindo dele algumas perguntas —, desenvolvi uma série de entrevistas aqui no blog com críticos literários brasileiros.

A conversa hoje é com Wilberth Salgueiro, poeta, crítico literário, pesquisador e professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Wilberth escreve no Rascunho sobre poesia e é autor de Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (2002), Lira à brasileira: erótica, poética, política (2014; disponível online), Prosa sobre prosa: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Reinaldo Santos Neves e outras ficções (2013) e Poesia brasileira: violência e testemunho, humor e resistência (2018).  Poeta, lançou Anilina (1987), Digitais (1990), Personecontos (2004) e O Jogo, Micha & Outros Sonetos (2019). Além disso, lançou o infantojuvenil O que é que tinha no sótão? (2013).

Acesse todos os textos publicados na série Da Crítica Literária.

O que é a crítica para você? 

Se formos à raiz da palavra, crítica implica julgamento, valoração – que é o que menos se faz, como sabemos.

Penso que, minimamente, a crítica deve, para usar um termo e conceito adorniano, dar “primazia ao objeto”, isto é, tentar entendê-lo em sua forma, pois na forma está a história de onde veio o objeto. Tal gesto, difícil, exige um esforço para que o sujeito não faça do objeto uma mera projeção do que ele mesmo é.

Noutras palavras, a crítica não deve se impor ao objeto, mas ir fundo, compreender os valores não só estéticos, mas éticos, que lhe dão sustentação e existência.

Assim procedendo, o crítico poderá cumprir um desejo de Guimarães Rosa, para quem “a crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando aspira a complementar, a preencher, em suma, a permitir o acesso à obra”, conforme disse o mineiro na célebre entrevista a Günter Lorenz.

No campo da crítica, qual a sua ética? 

Tentar ser justo com o texto sobre o qual jogo todos os holofotes possíveis.

Tentar ser útil para o leitor que porventura terá contato com aquela minha crítica.

Tentar ser verdadeiro comigo mesmo, de modo a ficar convencido de que aquela elaboração crítica foi o máximo que pude (considerando, claro, as condições e o contexto: o tempo necessário; o formato; o público; se jornal, periódico, livro etc.).

Em síntese: justiça com o texto, utilidade para o leitor, verdade para mim.

Quais imposições que se faz? 

Estudar bastante o texto em pauta. No prefácio do precioso livro Na sala de aula, Antonio Candido diz algo aparentemente óbvio: “Ler infatigavelmente o texto analisado é a regra de ouro do analista. A multiplicação das leituras suscita intuições, que são o combustível neste ofício”. Estudar o texto envolve, naturalmente, estudar sobre o texto. Há muita crítica que descobre a pólvora, mas, sem pesquisar a fortuna existente, vê os fósforos rapidamente se apagarem. E a pólvora perde a validade que nem tinha.

Tenho cada vez mais buscado a clareza. Há muita crítica que se quer complexa, mas é confusa. A crítica pode ser — nada há que impeça — altamente lúdica, e os bons críticos sabem disso, e fazem seus jogos internos, calmos e felizes mesmo com o anonimato de tais jogos. Digo isso porque a clareza do ensaio crítico não entra em conflito com a porção criativa do texto (de que faz parte uma dose controlada de ambivalência).

Ademais, não propriamente como uma imposição, tenho procurado privilegiar textos que tenham algum tom ou teor social, isto é, poemas menos lírico-subjetivos ou prosas com enredos de interesse mais coletivo (como a literatura de testemunho, por exemplo).

Então, estudar incansavelmente (sobre) o texto, buscar incessantemente a clareza, explorar o lúdico da linguagem e privilegiar textos de abrangência mais socialmente ampla são algumas das minhas diretrizes.

Quais os princípios de trabalho com os quais não transige? 

Há um monstro que paira sobre nossas cabeças e que se chama Estereótipo (ou, com nuances, Clichê, Chavão, Senso Comum). Valho-me, claro, da Aula de Roland Barthes: “Em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua”. Quero dizer que, entre as tarefas árduas de um crítico, esta deve ser incontornável: não transigir com o estereótipo. A despeito de ser quase invencível, pois se arrasta na língua, estando em tudo, tê-lo no horizonte como adversário e inimigo pode nos fortalecer. O estereótipo (me apropriando livremente do mito) é a pedra de todo crítico, digo, de todo Sísifo.

Qual a qualidade básica no trabalho do crítico? 

Paciência: a pressa de finalizar nos conduz ao muito-imperfeito.

Concisão: a tagarelice entedia e conduz o leitor ao devaneio.

Curiosidade: o desinteresse conduz objeto e sujeito ao nebuloso, obscuro, insosso.

Quando o crítico sabe que sua missão está cumprida? 

Missão é um termo forte, carregado, sobredeterminado.

De todo modo, indo e vindo da teoria à prática e vice-versa, talvez o crítico cumpra seu papel quando faz encontrar seu texto a certo leitor. Pode ser que, deste encontro, o certo leitor saia, como escreveu Ana Cristina Cesar em um de seus mais belíssimos poemas, com “um filete de sangue / nas gengivas”, ou seja, que tenha seu corpo intensamente afetado por aquilo para o qual dedicou um tempo de sua vida.

O que seria um crítico sem doutrina?

Doutrina é outro termo forte, mas se compreende — e aqui não vem ao caso contestar a “profissão de fé” de Candido, sobretudo lembrando que seu texto “Ouverture” é de 1943.

Se, por doutrina, entendermos um conjunto de ideias, e se esse conjunto admite ideias plurais e mesmo oriundas de pensamentos mais ou menos antagônicos, é impossível existir um crítico sem doutrina.

Mas parece que a pergunta pressupõe um conjunto de ideias mais ou menos afins, harmoniosas, coerentes: uma doutrina. Nesse sentido específico, prefiro um crítico sem (uma) doutrina a um crítico com (uma) doutrina. E isso não diz respeito a ecletismo, relativismo ou vale-tudo. Trata-se, antes, de entender que a crítica que busca dar primazia ao objeto deve se valer de todas as “doutrinas” que possam — feito um fogo de artifício — lançar luz e beleza, ainda que efêmeras, ao objeto.

De certa maneira, pois, minha doutrina em sentido lato é esta: tentar dar à crítica um estatuto de arte: uma arte que explica outra arte.

 

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